Revista Coletivo Cine-Fórum – RECOCINE
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RECOCINE, v. 1. n. 1 | jan-abr | 2023 | Goiânia, Goiás
Como enunciado anteriormente, a cada desenho, o rosto do protagonista fica mais feio
e abatido, e é exatamente dessa forma que o homem se sente e aparenta. Um dos maiores
choques ocorre quando ele se defronta com a própria imagem no quarto retrato, que lhe é
entregue juntamente com a margarida. “O retrato é muito feio. Não que seja malfeito, mas é
muito velho, tem uma expressão triste, cinzenta. Fiquei surpreso. Cheguei a sentir medo de
me olhar no espelho. Depois olhei. Vi que é a minha cara mesmo” (ABREU, 2012, p. 53).
Diferente da margarida, com o centro amarelo e as pétalas brancas, que significam luz e
pureza, o rosto do protagonista é acinzentado e soturno.
Ao chegar em casa, o homem coloca a flor em um copo com água e um comprimido
dissolvido dentro, pois “[...] disseram que faz a flor durar mais” (ABREU, 2012, p. 53). Um
tempo depois, ele recorda o que o hippie lhe disse ao entregar a margarida. “Flor e abismo.
Ou seria: flor é abismo? Não lembro. Sei que era isso. Levantei para olhar a margarida.
Continuava amarela e branca, redonda e longa” (ABREU, 2012, p. 55).
Desse modo, o narrador caiofernandiano nos apresenta um paradoxo, pois a flor é
delicada e bonita, ao passo que o abismo é algo extremo, um precipício sem fim, que remete à
sensação de estar caindo e não ter no que se apoiar. Além disso, a técnica do comprimido é
uma metáfora para a tentativa do protagonista de prolongar e fortalecer seu elo com o hippie,
representado pela margarida. Então, quando o rapaz desaparece, antes de fazer o sétimo retrato,
o protagonista se desespera, e se apega ainda mais à flor:
Aconteceu uma coisa horrível. É muito tarde e ele não veio. Não consigo
compreender. Talvez tenha ficado doente, talvez tenha sofrido um acidente
ou qualquer coisa assim. É insuportável pensar que esteja sozinho, com suas
mãos paradas no ar, ferido, talvez morto. Chorei muitas vezes olhando a
margarida que ele me deu. Logo hoje que ia desenhar o último retrato, que
eu ia dar a ele o colar, convidá-lo para dormir aqui, para comer comigo
(ABREU, 2012, p. 56-57).
Em seguida, o narrador inicia uma busca em delegacias, hospitais e até mesmo no
necrotério, mas não encontra o rapaz em parte alguma. Desnorteado perante o
desaparecimento e, consequentemente, o não cumprimento do acordo, o protagonista
apresenta mudanças de comportamento inaceitáveis para os integrantes de seu meio social,
que passam a marginalizá-lo, da mesma forma que faziam com o grupo de hippies. Por exemplo,
ele procura as vizinhas para perguntar sobre o paradeiro do hippie, mas três delas lhe batem
com a porta na cara. Também passa o dia na praça, com a esperança de que o rapaz apareça,
uma atitude que provoca estranheza: