164
Revista Coletivo Cine-Fórum – RECOCINE | v. 2 - n. 2 | mai-ago | 2024 | ISSN: 2966-0513 | Goiânia, Goiás
UM CORTE VERTICAL
Indiscutivelmente, aquilo que nos conecta com todos os outros seres é o sangue, e além
dele, outros pontuais semelhanças. Tipo A, B, AB e O, positivos ou negativos, doadores
universais ou não, soropositivos; vermelhos! Nunca azuis! Estes que morram na guilhotina.
Também é ele, o sangue, uma das colunas gregas do cinema de horror. Não só visual, também
como uma figura — como bem enquadraria Žižek —fantasmática. Como diria o amoral
nitzscheano e imortal personagem de Mojica: “O que é a vida? É o princípio da morte. O que
é a morte? É o fim da vida. O que é a existência? É a continuidade do sangue. O que é o
sangue? É a razão da existência”. Ao horror, a regra: jamais se esqueça do sangue!
No cinema francês, o sangue parece ser sempre uma constante. Desde a representação
fantasmática com a cabeça cortada de Méliès, passando pelos “Les yeux sans visage” (1960),
de Franju, até a sua materialidade biológica em “Grave” (2016), de Julia Ducurnau. Na primeira
metade dos anos 2000, uma aberração conceitual foi cunhada pelo crítico canadense James
Quandt; “New French Extremity” foi a ideia que sujou a visão estúpida das linhas de Quandt
em seu artigo de opinião “Flesh & Blood: Sex and Violence in Recent French Cinema”,
publicado na revista Artforum.
O crítico que busca novas tendências poderia chamá-la de New French
Extremity, essa recente tendência que trabalha o transgressivo intencional por
diretores como François Ozon, Gaspar Noé, Catherine Breillat, Philippe
Grandrieux — e agora, infelizmente, Dumont. Tanto Bava quanto Bataille,
Salò assim como Sade parecem ser os determinantes de um cinema de repente
decidido a quebrar todos os tabus, a mergulhar em rios de vísceras e jorros de
esperma, a preencher cada quadro com carne, núbil ou nodosa, e submetê-la a
todo tipo de penetração, mutilação e profanação. Imagens e temas que eram
antes provenientes de filmes gore, exploitation e pornô — estupros coletivos,
espancamentos e cortes e cegueiras, ereções e vulvas, canibalismo,
sadomasoquismo e incesto, sexo e fisting, jorros de esperma e gore -
proliferam nos ambientes de alta arte de um cinema nacional cujas
provocações historicamente foram formais, políticas ou filosóficas (Godard,
Clouzot, Debord) ou, em sua forma mais imoderada (Franju, Buñuel,
Walerian Borowczyk, Andrzej Zulawski), pelo menos assimiláveis como
emanações de um movimento artístico (principalmente o Surrealismo). Um
tipo de espírito irredentista de incitamento e confrontação, revivendo as
sagradas tradições de gala do cinema maldito, do épater les bourgeois e amour
fou, explicaria as táticas de choque empregadas no recente cinema francês?
Ou elas revelam uma crise cultural, forçando os cineastas franceses a
responder à morte do inelutável (identidade francesa, língua, ideologia,
formas estéticas) com medidas desesperadas? (Quandt, 2004, on-line, n.p.,
tradução nossa)