Jonathan Luís Hipolito Ferreira
Possui Licenciatura e Bacharelado em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Juiz de
Fora. Atualmente está cursando o Mestrado no Programa de Pós-Graduação em Artes, Cultura e
Linguagens da UFJF, na linha de pesquisa de Cinema e Audiovisual. E-mail:
jonathan.ferreira@estudante.ufjf.br
Holds a Bachelor's and a Licentiate Degree in Biological Sciences from the Federal University of
Juiz de Fora. Currently pursuing a Master's Degree in the Graduate Program in Arts, Culture, and
Languages at UFJF, with a focus on Film and Audiovisual Studies. Email:
jonathan.ferreira@estudante.ufjf.br
Christian Hugo Pelegrini
https://orcid.org/0000-0001-9289-4694
Graduado em Rádio e TV pela UNESP de Bauru, Especialista em Teorias e Técnicas de
Comunicação pela Fundação Cásper Líbero, Mestre em História da Ciência pela PUC-SP, Doutor
em Meios e Processos Audiovisuais pela ECA-USP. Professor Adjunto do Instituto de Artes e
Design da UFJF, atuando no curso de graduação em Cinema e Audiovisual e no Programa de pós-
graduação em Artes, Cultura e Linguagens. Professor da rede internacional de pós-graduação
IMACS. Coordenador do grupo de pesquisas Entelas e membro dos grupos Gelidis e Deifec. E-mail:
christian.pelegrini@gmail.com
Graduated in Radio and TV from UNESP in Bauru, Specialist in Theories and Techniques of
Communication from Fundação Cásper Líbero, Master's in History of Science from PUC-SP, PhD
in Media and Audiovisual Processes from ECA-USP. Associate Professor at the Institute of Arts
and Design at UFJF, working in the undergraduate program in Film and Audiovisual Studies and in
the Graduate Program in Arts, Culture, and Languages. Professor in the international postgraduate
network IMACS. Coordinator of the research group Entelas and member of the groups Gelidis and
Deifec. Email: christian.pelegrini@gmail.com
Este artigo passou por avaliação por pares cega e software anti-plágio.
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A POÉTICA DO ANTI-HERÓI SUTIL:
UMA ANÁLISE DOS PERSONAGENS DE SUCCESSION
RESUMO
O artigo analisa alguns aspectos da poética dos personagens complexos e anti-heróis no contexto da
complexidade narrativa, elaborado por Jason Mittell (Mittell, 2015) em seu livro Complex TV: The
Poetics of Contemporary Television Storytelling. Uma das características da complexidade narrativa é
a exploração de temas e personagens complexos, permitindo uma gama maior de representação de
personagens desagradáveis ou mesmo anti-heroicos, figuras antes relegadas a papéis secundários na
narrativa seriada tradicional. O anti-herói, ao contrário do herói clássico, é o protagonista que apresenta
ambiguidade moral, podendo recorrer a comportamentos repreensíveis ou mesmo à criminalidade para
alcançar seus objetivos, sejam eles nobres (seguindo a lógica de que os fins justificam os meios) ou
egoístas. Nosso foco neste trabalho está no subtipo do anti-herói que chamamos de anti-herói sutil. Ao
contrário do anti-herói extremo (Liddy-Judge, 2013), caracterizado por um desvio moral pronunciado e
criminalidade, o anti-herói sutil representa mais um obstáculo na própria jornada e no seu círculo social
mais íntimo, tendo como exemplos os protagonistas de algumas comédias como Fleabag, It’s Always
Sunny in Philadelphia e Girls. Tomamos a série de dramédia Succession como estudo de caso e
investigamos o conjunto de estratégias narrativas que a série empreende na construção de seus
personagens complexos: o hibridismo de gênero, combinando os gêneros dramático e satírico; a adoção
do modo de representação observacional característico de alguns documentários e de sua paródia, o
mocumentário; e a estratégia da moralidade relativa observada por Mittell (2015). A combinação dessas
estratégias proporciona a Succession uma trama sofisticada populada de personagens complexos.
Palavras-chave: Complexidade narrativa. Poética. Personagens. Succession.
THE POETICS OF THE SUBTLE ANTI-HERO:
AN ANALYSIS OF SUCCESSION’S CHARACTERS
ABSTRACT
The article analyzes aspects of the poetics of complex characters and anti-heroes in the context of
narrative complexity, as elaborated by Jason Mittell (Mittell, 2015) in his book Complex TV: The Poetics
of Contemporary Television Storytelling. One of the characteristics of narrative complexity is the
exploration of complex themes and characters, allowing for a broader range of representation of
unpleasant or even antiheroic characters, figures previously relegated to secondary roles in traditional
serial narratives. The antihero, unlike the classic hero, is the protagonist who exhibits moral ambiguity,
potentially resorting to reprehensible behavior or even criminality to achieve their goals, whether those
goals are noble (following the logic that the ends justify the means) or selfish. Our focus in this paper is
the subtype of the anti-hero we call subtle anti-hero. Unlike the extreme anti-hero (Liddy-Judge, 2013),
characterized by a pronounced moral deviation and criminality, the subtle anti-hero represents more of
an obstacle in their own journey and in his most intimate social circle, with examples being the
protagonists of some comedies like Fleabag. It’s Always Sunny in Philadelphia and Girls. We take the
dramedy series Succession as a case study and investigate the set of narrative strategies that the series
employs in the construction of its complex characters: the hybridization of genres, combining dramatic
and satirical genres; the adoption of the observational mode of representation characteristic of some
documentaries and their parody, the mockumentary; and the strategy of relative morality observed by
Mittell (2015). The combination of these strategies provides Succession with a sophisticated plot
populated by complex characters.
Keywords: Narrative complexity. Poetics. Characters. Succession.
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INTRODUÇÃO
Este trabalho parte do paradigma das narrativas televisivas seriadas que Jason Mittell
denomina complexidade narrativa, caracterizado pelo equilíbrio dinâmico entre o formato
episódico e capitular (Mittell, 2015). Segundo Mittell, a complexidade narrativa é o formato
adotado por muitas séries situadas historicamente em torno da virada do milênio, como
resultado de um conjunto de mudanças industriais, tecnológicas e de recepção. Além da
estrutura formal dinâmica, outros aspectos da complexidade narrativa são: a mistura de gêneros,
reflexividade, estratégias de confusão temporária, personagens elaborados, entre outros
(Mittell, 2015).
Nos dedicaremos à poética de personagens nas séries complexas, tendo em vista
especialmente o tropo do anti-herói, que se popularizou na televisão a partir desse novo
contexto. Enquanto a maioria dos estudos acerca desse tipo de protagonista foca no que Liddy-
Judge chama de anti-herói extremo (Liddy-Judge, 2013), nosso interesse está numa variação
que chamaremos de anti-herói sutil. Essa variação do anti-herói, diferente da categoria mais
extrema (composta de mafiosos, seriais killers, traficantes, policiais corruptos, e outros
criminosos), pode ser melhor compreendido como um indivíduo mediano, servindo de
obstáculo na própria jornada individual e no círculo familiar e social mais íntimo, em vez de
uma disrupção mais ampla do tecido social.
Abordaremos, inicialmente, a análise de Mittell acerca das estratégias narrativas
envolvidas na criação e no desenvolvimento de personagens complexos e anti-heróis. Em
seguida, tomamos como objeto do nosso estudo de caso a série Succession (2018-2023), da
HBO. Pretendemos mostrar como ela emprega, de maneira mais elaborada, uma das estratégias
observadas por Mittell para criar seus personagens complexos e, muitas vezes, desagradáveis,
que podem ser considerados exemplos do anti-herói sutil.
ANTI-HERÓIS EXTREMOS E SUTIS
A narrativa seriada, cujo tempo discursivo tende a ser maior, favorece a exploração de
personagens complexos, dotados de uma variedade de traços característicos, por vezes
antagônicos. Em alguns casos, esses traços podem ser apresentados de maneira mais gradual,
forma que Pelegrini (2019) sugere tratar como apresentação extensiva, que permite personagens
com mais nuances e proporciona um ritmo narrativo mais natural e menos dependente de
conveniências de roteiro e coincidências (Pelegrini, 2019, p. 144). Pelegrini cita as obras da
HBO, mencionando The Wire como um exemplo em que o tempo discursivo proporciona tempo
suficiente para a narrativa acontecer de modo mais natural (ibid., p. 147). O contexto
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institucional e o modelo econômico da HBO (ver em Smith, 2018), mais livres de pressões
publicitárias e regulamentações, possibilitaram esse tipo de apresentação.
Esse contexto industrial e criativo favoreceu a construção de personagens cada vez mais
elaborados, culminando na popularização do anti-herói na televisão (Mittell, 2015; Dunleavy,
2017). Brett Martin (2014), em Difficult Men, se dedica a esse momento e, além dele, muito do
que é produzido na literatura acadêmica acerca do assunto gira em torno da precursora The
Sopranos e de séries por ela influenciadas, como Mad Men e Breaking Bad.
O anti-herói, ao contrário do herói clássico, é o protagonista que apresenta ambiguidade
moral, podendo recorrer a comportamentos repreensíveis ou mesmo à criminalidade para
alcançar seus objetivos, sejam eles nobres (seguindo a lógica de que os fins justificam os meios)
ou egoístas. Exemplos anti-heróicos podiam ser encontrados na literatura. Liddy-Judge
(2013), num breve histórico sobre a figura do anti-herói, argumenta que, apesar de alguns
precedentes, é na obra Notes from Underground, de Fyodor Dostoevsky, que ele se concretiza
(Liddy-Judge, 2013, p. 16).
A partir de Dostoevsky e Sartre, Liddy-Judge associa o anti-herói à corrente filosófica
e literária conhecida como existencialismo (ibid., p. 17-18), que prioriza a existência humana
individual, ao invés de essências e verdades universais. O movimento existencialista tematiza
a angústia existencial, a busca por propósito, o sofrimento, a morte, entre outras emoções e
fenômenos relacionados à experiência humana diante de um mundo aparentemente sem sentido.
Apesar da precedência na obra de filósofos como Nietzsche e Kierkegaard, é no período durante
e após a Segunda Guerra Mundial que o existencialismo ganha maturidade e se populariza,
através de nomes como Jean-Paul Sartre, Maurice Merleau-Ponty e Albert Camus (Reynolds,
2012). Apesar de rejeitar o termo “existencialista” para si, Camus, em sua filosofia do Absurdo,
compartilhava muito dos temas existenciais. Em sua obra de ficção O Estrangeiro, Camus nos
apresenta a Meursault, um homem apático que comete um assassinato, mas que é julgado e
condenado mais por não ter chorado no funeral de sua mãe do que, de fato, pelo crime que
cometera (Camus, 2019). A indiferença de Meursault em relação à vida e ao seu destino o torna
um exemplo do anti-herói. Mais do que seu crime, sua apatia diante do próprio destino é o que
o aproxima do tipo de anti-herói que estamos interessados aqui.
Protagonistas anti-heróis logo chegariam ao cinema (e.g. Scarface, Citizen Kane). No
entanto, na televisão, é no contexto da complexidade narrativa, especialmente associada à
televisão a cabo e ao narrowcasting, que ocorre sua popularização. Antes disso, o caráter
comercial da televisão aberta americana e o princípio do least objectionable program limitavam
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o tipo de conteúdo e os personagens permitidos. Apesar de reconhecer variadas encarnações do
anti-herói, Liddy-Judge está mais interessada num tipo específico, o anti-herói extremo, que
ela associa a um desvio moral extremo em direção à criminalidade (Liddy-Judge, 2013, p. 22-
23).
Nosso interesse neste trabalho, no entanto, está na versão menos extrema do anti-herói,
mais próximo daqueles encontrados na literatura. Para além do anti-herói extremo,
caracterizado por um desvio pronunciado às normas sociais, alguns personagens que são
considerados anti-heróis meramente por serem desagradáveis, patéticos, problemáticos,
egoístas, etc. Mittell (2015) apresenta como variantes do anti-herói, além das figuras mais
vilanescas, os protagonistas falhos e egoístas de alguns dramas (House, M.D., The Wire) e os
protagonistas desagradáveis de algumas comédias como The Office e Seinfeld (Mittell, 2015, p.
143). Chamaremos essa variação de anti-herói sutil.
Estes protagonistas falhos e desagradáveis podem possuir traços de personalidade que
os tornam repulsivos ou exibir comportamentos controversos e negativos. São personagens
difíceis, para tomar emprestado o termo de Martin (2014).
Eles podem até ser pessoas decentes, mas possuírem falhas de caráter e idiossincrasias
que dificultam sua jornada e complicam suas relações. Essa variação da figura anti-heróica
ocupa essa categoria não necessariamente por um desvio moral e legal acentuado, como no caso
dos criminosos Tony Soprano e Walter White, mas simplesmente por possuírem características
desagradáveis ou repreensíveis de acordo com a conduta moral hegemônica.
O anti-herói (ou anti-heroína) sutil pode não ser um mestre do crime, um psicopata ou
um policial corrupto, que perturbam a ordem social em larga escala. Ele pode ser um
publicitário mulherengo, que trai a esposa e vive uma identidade falsa, como Don Draper (Mad
Men). Ela pode ser uma millennial mimada e irritante, como Hannah Horvath, de Girls.
Essa variação pode representar menos uma disrupção do sistema e mais uma espécie de
anti-herói da própria história, propenso à autossabotagem e a perturbação do círculo familiar e
social mais íntimo. Eles podem não matar, mas se colocam em situações constrangedoras e
humilhantes, são arrogantes, mentem, manipulam, traem, operando numa estética do
desconforto bastante presente na televisão contemporânea, possivelmente associada à
instabilidade cultural e econômica do contexto neoliberal (Hargraves, 2022). Eles querem ser
bem-sucedidos, mas não sabem como ou não conseguem, e, muitas vezes, se colocam como
obstáculo na própria jornada. Em Shameless, por exemplo, Fiona Gallagher assumiu desde cedo
o fardo de cuidar dos irmãos mais novos em detrimento da própria vida, agindo de maneira a
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autossabotar seus relacionamentos e os pequenos sucessos que obteve ao longo da
narrativa. Seus erros costumam frustrar seus próprios planos e, às vezes, colocam em risco os
irmãos que ela luta para cuidar.
Na quarta temporada, por exemplo, Fiona obtém certa estabilidade financeira
trabalhando numa empresa de copos. Ela começa a namorar seu chefe, Mike, mas acaba o
traindo com seu irmão viciado, Robbie. Numa festa em casa, Fiona usa a cocaína que recebeu
de Robbie, deixando ao alcance de Liam, seu irmão caçula de 3 anos. Liam acaba ingerindo a
droga e é hospitalizado, o que faz com que Fiona seja presa por negligência.
A presença de protagonistas desagradáveis é mais comum em séries britânicas e em
algumas comédias e dramédias americanas (Girls, Insecure, Shameless), sobretudo quando
estas últimas possuem alguma relação com a televisão britânica. Shameless, por exemplo, é um
remake da série britânica de mesmo nome. Ainda assim, costumam ocorrer mudanças no tom
da comédia e na caracterização dos personagens para que a obra possa se adequar melhor ao
mercado americano. Pelegrini (2019) mostra como o remake americano de The Office precisou
tornar seus personagens mais palatáveis do que aqueles presentes na versão original, devido ao
maior tempo discursivo em que eles apareceriam. (Pelegrini, 2019, p. 150).
Nos Estados Unidos, os dramas não costumam adotar uma predominância de
personagens desagradáveis. Uma característica comum da maioria das séries americanas,
especialmente no broadcast, é a limitação da presença desse tipo de personagem (Pelegrini,
2019, p. 150; Mittell, 2015, p. 142). Mesmo em canais a cabo, os programas tendem a limitar o
caráter desagradável a seu protagonista anti-herói e a vilões ou outros personagens com função
de antagonizar com o protagonista, sendo, muitas vezes, ainda mais desagradáveis. Esta
justaposição caracteriza uma estratégia que Mittell denomina moralidade relativa (Mittell,
2015, p. 143).
Em contrapartida, algumas séries, como Succession, se afastam da tendência de limitar
a presença de personagens desagradáveis, ao ponto que toda sua ensemble apresenta
características dignas de repreensão. Succession não apenas faz isso, como o faz sem recorrer a
muitas das estratégias analisadas por Mittell, como a utilização de flashbacks e acesso à
subjetividade. Pretendemos, assim, analisar as estratégias narrativas e de gênero adotadas por
Succession na construção de seus personagens desagradáveis.
POÉTICAS DOS ANTI-HERÓIS E PERSONAGENS DESAGRADÁVEIS
O contexto comercial da televisão americana requer que os personagens sejam
agradáveis, mas algumas séries se desviam dessa exigência. Esse desvio, como dissemos, é
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mais comum em comédias, principalmente as de natureza satírica, como The Office e Veep,
obras que investem em personagens patéticos e suas desventuras. Uma estética cringe
(neologismo adaptado do inglês para designar algo vergonhoso), baseada no desconforto e no
constrangimento, pode estar aliada a essas produções (Hargraves, 2022).
Podemos tratar esses personagens patéticos e/ou desagradáveis como subcategorias do
anti-herói sutil. Personagens desagradáveis, aqui, são aqueles que se tornam assim não apenas
na relação a posteriori com o espectador, mas logo na idealização da série, na escrita do roteiro
e no desenrolar da narrativa, sendo desagradáveis em sua essência diegética, por possuírem
falhas e comportamentos repulsivos que dificultam seus avanços e relações interpessoais e os
afastam de seus objetivos.
Desagradável” e “patético” podem se referir a uma gama de defeitos e características
indesejáveis, mas não significa dizer que os personagens assim categorizados são
completamente detestáveis ou ridículos o tempo todo. Alguma coisa precisa manter os
espectadores investidos neles, em especial quando a proposta é justamente essa. Contudo, em
alguns momentos, as características negativas tendem a se sobressair, gerando conflitos que
avançam a narrativa, além de produzir comicidade. No entanto, mesmo esse personagem
precisa ser resultado de um equilíbrio dinâmico entre traços antagônicos; reside a
complexidade. A poética do personagem ridículo ou desagradável pode seguir as mesmas
estratégias utilizadas na construção dos anti-heróis extremos, gerando personagens
carismáticos, apesar de falhos; atraentes, e, ao mesmo tempo, repulsivos.
Para ajudar a explicar a relação entre o espectador e o anti-herói, Mittell recorre a
conceitos propostos por Roberta Pearson (a elaboração) e por Murray Smith (alinhamento e
fidelidade). A elaboração, relacionada com a ideia de apresentação extensiva citada
anteriormente, é a revelação gradual dos aspectos psicológicos do personagem. O alinhamento
consiste no apego gerado quando acompanhamos as experiências do personagem e no acesso a
seus estados subjetivos. A fidelidade está relacionada à avaliação moral que fazemos dos
personagens, simpatizando ou não com suas crenças e condutas (Mittell, 2015, p. 134). A
experiência narrativa, quando armada das estratégias adequadas, é capaz de gerar no espectador
um investimento emocional que o faz tolerar mesmo os personagens mais abomináveis.
Entre as estratégias apontadas por Mittell está a supracitada moralidade relativa, a
justaposição do anti-herói com personagens mais desagradáveis ou vilanescos (ibid., p. 143).
Esse contraste ajuda a destacar o anti-herói como alguém passível de redenção, mesmo que essa
redenção nunca chegue. Em The Sopranos, Tony Soprano, apesar de um mafioso violento e
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assassino, se torna mais palatável num ambiente populado por outros personagens considerados
mais hediondos que ele, como Richie Aprile e Ralph Cifaretto. Os deslizes de Fiona, em
Shameless, passam a ser mais compreensíveis quando colocados no contexto de sua vida difícil
e em contraste com o alcoolismo e os esquemas de Frank. Esta justaposição é a principal
estratégia utilizada em Succession, como analisaremos mais adiante. O que mais nos interessa,
no entanto, é a forma como a série coloca constantemente seus protagonistas em choque uns
com os outros, complexificando a ideia de moralidade relativa.
As outras estratégias analisadas por Mittell estão relacionadas ao alinhamento e à
elaboração, que, juntos, favorecem o envolvimento emocional com o anti-herói (ibid., p. 144).
Ferramentas narrativas como o uso de flashbacks para mostrar o passado do personagem, a
narração voice-over, a exploração de relações familiares e românticas, o acesso à subjetividade
do personagem através de pensamentos, sonhos e memórias, podem ser utilizadas para
contextualizar o anti-herói e sua história de vida, apresentando os eventos e traumas que
moldaram sua personalidade. Mittell cita como exemplo as sessões de terapia de Tony Soprano
e suas interações familiares, que nos aproximam dele ao explorarem sua complexidade
psicológica (ibid., p. 144).
Alguns traços de personalidade, como o carisma, também costumam ser empregados na
construção e no desenvolvimento de personagens anti-heroicos. Personagens carismáticos são
divertidos de acompanhar, apesar das possíveis falhas e comportamentos desagradáveis. A
coexistência desses traços antagônicos ajuda a compor a complexidade dos personagens, que
se tornam representações mais fidedignas e verossímeis de pessoas reais (Pelegrini, 2019, p.
141).
Uma combinação dinâmica e cuidadosa de algumas dessas estratégias pode
proporcionar uma conexão emocional eficaz entre o espectador e os personagens e elevar o
valor estético e cultural de uma série. The Sopranos, ao combinar as sessões de terapia, relações
familiares, flashbacks mostrando o passado de Tony, sonhos e outras sequências fantasiosas
numa história bem construída, foi capaz de proporcionar um dos personagens mais elaborados
da televisão, evocado e aclamado até hoje como inspiração de muitos outros personagens
similares. Outras séries podem utilizar estratégias e combinações distintas. Adiante,
analisaremos o tratamento diferenciado que Succession a seus personagens e a sua narrativa,
gerando complexidade psicológica mesmo sem o recurso a muitas dessas estratégias apontadas
por Mittell.
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SUCCESSION NO CONTEXTO DA COMPLEXIDADE NARRATIVA
Os exemplos mais clássicos de dramas considerados “de prestígio” (bem como a
maioria dos estudos acerca do anti-herói) são centrados em anti-heróis do tipo mais extremo,
ou algo próximo dele (The Sopranos, Mad Men, Breaking Bad, Dexter). Nosso levantamento
preliminar encontrou maior recorrência do anti-herói sutil em comédias americanas e britânicas:
as garotas em Girls e Insecure, a protagonista de Fleabag, o casal de You’re the Worst. No
entanto, a HBO recentemente deu espaço para o showrunner inglês Jesse Armstrong, conhecido
pelas comédias britânicas Peep Show e Fresh Meat e, como resultado, Succession emergiu em
2018 como uma combinação perfeita de drama sofisticado e comédia satírica. Os trabalhos
anteriores de Jesse Armstrong na televisão britânica, dotada de um tipo de humor bastante
característico
1
, podem ter contribuído para definir o tom tragicômico que Succession adotaria,
o que está alinhado com o caráter autoral presente em algumas séries complexas (Mittell,
2015).
A hipótese de trabalho advém da análise da complexidade narrativa de Succession, mais
especificamente no tocante ao hibridismo de gênero e a sofisticação de sua trama e de seus
personagens. Essa complexidade foi utilizada de maneira distinta dos exemplos mais clássicos,
mesmo aqueles da HBO. Apesar de a magnitude, em termos narrativos e de produção, se
comparar a outras obras do mesmo canal, Succession se apresenta de maneira peculiar, unindo
drama familiar e sátira e colocando em tela personagens tragicômicos que transitam muito bem
nessa corda bamba entre tragédia e comédia.
Esse caráter híbrido no desenvolvimento dos personagens é o que os tornam
interessantes para os propósitos deste artigo. Investigaremos como os personagens de
Succession são construídos e se manifestam em tela de maneira complexa, exibindo traços
desagradáveis, preconceitos e falas problemáticas, ao mesmo tempo em que são humanizados,
ao serem representados como resultado de uma criação negligente, tóxica e abusiva. Além
disso, os irmãos Roy não apenas são adversários na disputa pelo poder como, muitas vezes,
acabam sendo obstáculos no próprio caminho. Podemos considerá-los exemplos de anti-heróis
sutis, como anti-heróis da própria história, ao mesmo tempo em que disputam entre si pelo cargo
1
Entre as características do humor britânico está a satirização da absurdidade da vida cotidiana, a sagacidade,
insinuações sexuais e quebra de tabus (Attardo, 2014, p. 542). Ricky Gervais, co-criador de The Office, define o
humor britânico como sendo mais pessimista, em comparação ao maior otimismo encontrado no humor americano,
que reflete os ideais desta cultura e o chamado American dream”. (cf. Ricky Gervais on England vs. America,
2012).
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de CEO da Waystar Royco. A competição pelo cargo mais alto da empresa esconde, num nível
mais profundo, uma birra entre irmãos nunca superada e, na jornada individual deles, representa
uma tentativa desesperada de obter a aprovação de um pai relutante em proporcionar essa
aprovação.
O caráter tragicômico empregado na série torna esses personagens, ao mesmo tempo,
patéticos, desagradáveis e extremamente interessantes. Analisaremos, assim, a combinação de
estratégias narrativas utilizadas para obter complexidade: a adoção do modo de representação
observacional, com uma estética comum em documentários e mocumentários, e a moralidade
relativa observada por Mittell.
YOU ARE NOT SERIOUS PEOPLE”: A POÉTICA DOS PERSONAGENS DE
SUCCESSION
Succession narra a história de uma família dona de um conglomerado de mídias, a
Waystar Royco, e a disputa pelo cargo de Chief Executive Officer (CEO). No início da trama,
o atual CEO, o magnata Logan Roy, está para se aposentar e passar o cargo para o filho, Kendall
Roy. Kendall foi criado por toda a sua vida acreditando que seria o sucessor, mas, quando chega
a hora, Logan hesita e decide se manter no cargo, acreditando que o filho não está pronto para
assumir. A mudança repentina no planejamento instaura uma disputa entre o patriarca e os
filhos, bem como entre os irmãos. Todos querem se provar, ascender ao cargo e conseguir a
aprovação do pai.
Kendall, o sucessor prometido, demonstra inabilidade ao tentar fechar um acordo, o que
faz com que Logan retire a promessa por tempo indeterminado. Kendall, então, inicia uma
campanha contra o pai, alegando que ele está inapto para se manter no cargo de CEO, o que
culmina numa tentativa de golpe utilizando o conselho para destituir Logan. O problema é que
Kendall acredita estar mais preparado do que realmente está. Suas tentativas de derrubar o pai
constantemente falham e Logan acaba por obter ainda mais poder sobre ele.
Roman Roy, irmão de Kendall, também cresceu próximo a empresa, mas sua
personalidade infantil e problemática, suas piadas ofensivas, insultos e brincadeiras vulgares,
fazem com que ninguém realmente o leve a sério como sucessor. Além disso, sua inaptidão
sexual sinaliza a Logan algum tipo de falha na ideia de masculinidade que ele espera ver no
filho.
Siobhan “Shiv” Roy cresceu às margens da empresa, principalmente pelo fato de ser
mulher. Isso, por outro lado, permitiu que ela tivesse a liberdade de explorar uma carreira na
política, trabalhando, inicialmente, como consultora política para um candidato democrata
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inimigo de seu pai. Seu plano inicial é ajudar o então namorado e futuro marido, Tom
Wambsgans, que trabalha na Waystar, a ascender ao cargo de CEO. No entanto, a partir da
segunda temporada, quando Logan oferece o cargo a ela, Shiv abandona a política e passa a se
dedicar à empresa, aprendendo o necessário para assumir como CEO. A oferta de Logan acaba
se revelando mais uma manobra utilizada para manipular a filha do que uma promessa sincera,
na medida em que Shiv é constantemente deixada de lado, tanto devido a seu gênero, quanto
por falhar em sinalizar o preparo que Logan espera ver em algum de seus filhos.
Mesmo que o espírito de disputa se instaure entre os irmãos, cada um deles, ao mesmo
tempo, apresenta impulsos e defeitos que os desqualificam diante dos olhos de Logan. A
presença muitas vezes opressiva do pai em suas vidas e a vulnerabilidade deles a essa presença
os tornam personagens falhos em suas tentativas de se provarem dignos. Enquanto tentam
sabotar os outros irmãos, eles acabam, muitas vezes, se autossabotando também no processo.
A tentativa de Kendall de derrubar o pai na primeira temporada acaba falhando quando
ele, numa busca impetuosa por drogas, acaba causando indiretamente a morte de um rapaz.
Quando o corpo é descoberto, Logan garante que o caso seja abafado, fazendo com que Kendall
fique em suas mãos e desista do golpe. Na surpreendente season finale da segunda temporada,
Kendall, até então coagido a permanecer do lado de Logan, se volta contra ele e o denuncia
como responsável pela série de acobertamentos dos abusos cometidos no setor de cruzeiros.
Seu objetivo de derrubar o pai ganha força novamente, mas logo sua egomania entra em seu
caminho. O jeito errático e egocêntrico de Kendall impede que ele conquiste os irmãos para seu
lado e o torna incapaz de aceitar os conselhos da própria advogada, o que dificulta sua causa e
acaba frustrando mais uma vez seus planos. Desolado, Kendall enfim desiste de sua campanha
e decide vender sua parte da empresa, acreditando renunciar à crueldade do pai e se erguendo
como uma pessoa melhor. Logan recusa a oferta, usando a morte do rapaz para demonstrar que
Kendall não é tão bom quanto acredita ser.
Shiv, que no início possui uma promissora carreira política fora da companhia, é
facilmente seduzida para dentro quando o cargo é oferecido a ela. No entanto, sua insegurança
e falta de experiência corporativa não demoram a se tornar obstáculos e, mesmo ela sendo
relativamente mais madura que seus irmãos, sua maturidade não a ajuda em nada no meio
machista que a cerca, pois os homens a seu redor se recusam a valorizá-la. Como resposta, Shiv,
em vez de se dedicar a elevar suas competências, acaba por recorrer a tentativas desesperadas
e impensadas de garantir seu poder (como tentar pressionar Logan a anunciá-la publicamente
como sucessora) e por absorver parte da cultura corporativa centrada numa ideia de
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masculinidade pautada em tiradas sarcásticas e piadas de cunho sexual, na tentativa de se provar
“um dos caras”.
A disputa entre os irmãos pelo cargo de CEO reflete a busca por propósito (que, em
Succession, parece significar poder e validação paterna) característica da corrente
existencialista e sua subcategoria do anti-herói perdido num mundo aparentemente sem sentido.
Se, nas primeiras temporadas de Succession, essa ligação parece circunstancial, ela se torna
mais nítida na quarta e última temporada da série, quando a Waystar está prestes a ser vendida
ao visionário da tecnologia Lukas Matsson. Segundo a sinopse da temporada no site oficial da
HBO, “A perspectiva desta venda sísmica provoca angústia existencial e divisão familiar entre
os Roys enquanto antecipam como serão suas vidas uma vez que o acordo esteja concluído.”
(HBO, 2023). De fato, os temas existenciais se intensificam com a ameaça da venda. Na season
premiere da quarta temporada, intitulada The Munsters, Logan Roy reflete com seu guarda-
costas, Colin, sobre a ontologia das pessoas enquanto meras unidades econômicas no contexto
capitalista e indaga sobre o que depois desta vida: Do you think there’s anything after all
this? Afterwards? I don’t think so. I think this is it.. Essa indagação acaba se mostrando um
prelúdio para sua morte, que acontece dois episódios depois. Ao final da série, com a venda
concluída e a Waystar saindo do controle da família, uma atmosfera melancólica reflete a perda
de propósito, especialmente no caso de Kendall, a quem a posição de CEO fora prometida desde
criança. Apesar de a atmosfera existencialista remeter ao anti-herói literário observado por
Liddy-Judge, nos dedicamos a analisar outro aspecto deste tipo de personagem: o caráter
patético característico do anti-herói tragicômico.
A narrativa de Succession está centrada num ensemble, um conjunto de personagens que
dividem um protagonismo flexível. Por se tratar de um drama que satiriza o estilo de vida dos
bilionários, debochando deles ao mesmo tempo com certo desprezo e empatia, seus
personagens não se aproximam tanto do anti-herói extremo clássico dos dramas prestigiados,
estando mais próximos do nosso anti-herói sutil. Mesmo que suas ações, por vezes, cruzem o
limite do que é moralmente aceitável, possivelmente fazendo com que eles se assemelhem ao
tipo mais extremo, no geral eles tendem a permanecer num nível mais básico, ou talvez no meio
do caminho entre um tipo e outro. O desespero pela aprovação do pai e as tentativas frustradas
de obtê-la tornam Kendall, Shiv e Roman personagens patéticos, apesar de fascinantes. Esse é
um elemento importante, porque, em vez de glamourizar o estilo de vida do alto escalão,
Succession parece querer fazer o contrário, mostrando o lado ridículo da fortuna, ao representar
seus personagens como pessoas mimadas e privilegiadas, que nunca precisaram lutar por nada
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além do amor de um pai esquivo. Eles herdaram as cartas necessárias para o jogo do capitalismo
neoliberal, mas não sabem o que fazer com elas. Nesse contexto, todos os irmãos acabam sendo
anti-heróis da própria história, pois, apesar do desejo de se tornarem CEO, eles apresentam
falhas que os tornam incapazes de se provar merecedores, especialmente de acordo com os
rígidos critérios estabelecidos por Logan.
O tom satírico e a ridicularização da classe alta são obtidos através da adoção de uma
estética inspirada no modo de representação observacional de alguns documentários. Essa
inspiração, no entanto, parece não vir diretamente do gênero documentário, mas indiretamente,
através de sua paródia, o subgênero da comédia conhecido como mocumentário (do inglês
mockumentary). Nesse subgênero, o modo de representação observacional dos documentários
é parodiado e o próprio formato documental, com suas estratégias, movimentos de câmera e
técnicas de edição, é mobilizado para a produção de humor, como nas séries The Office e Parks
and Recreation.
Bill Nichols (1991), escrevendo sobre os tipos de documentários, define os modos de
representação como as “formas básicas de organizar textos em relação a certas características
recorrentes ou convenções”, sendo estes modos: expositivo, observacional, interativo e
reflexivo (Nichols, 1991, p. 32). O modo de representação observacional (que outros autores
chamam de direct cinema ou cinema verité, tanto de maneira intercambiável quanto como
modos distintos) é, para Nichols, aquele em que não intervenção do cineasta. Neste modo,
que evita ferramentas expositivas como narração voice-over, intertítulos e entrevistas, a edição
opera de maneira a proporcionar a impressão de tempo vivido (ibid., p. 38). O modo de
representação observacional visa, assim, representar a realidade cotidiana, evitando controle
sobre os eventos. Uma característica desse modo é a utilização abundante da câmera portátil
como forma de proporcionar imersão na situação observada.
Mills (2004) e Thompson (2007) refletem sobre a influência do formato documental nas
sitcoms a partir do início do século XXI, considerando The Office como um marco importante
dessa influência. Mills, baseado na ideia de cinema verité, propõe o conceito de comedy verité
para definir o formato dessas novas sitcoms, que se apropriam do formato documental para
produzir humor, especialmente através do constrangimento e do desconforto (Mills, 2004).
Seja qual for a terminologia utilizada e o subgênero exato do documentário a ser
cooptado pelas sitcoms, o que mais nos interessa aqui é a influência do modo de representação
observacional (segundo a definição de Nichols) nas séries de comédia contemporâneas, na
medida em que elas podem informar sobre as estratégias de gênero e filmagem aplicadas em
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Succession. A herança indireta do modo de representação observacional em Succession,
possivelmente tendo como intermediário o mocumentário ou comédias de estilo semelhante, se
evidencia tanto na inequívoca intenção de Succession de produzir comicidade quanto na
experiência anterior do showrunner, Jesse Armstrong, com a comédia, em séries (The Thick of
It, Peep Show) e filmes (In the Loop, Four Lions) em que aparece como roteirista. Apesar do
trabalho colaborativo no cinema e na televisão e do fato de a direção de Mark Mylod em grande
parte dos episódios de Succession contribuir para o aspecto visual inspirado no modo de
representação observacional, atribuímos a Jesse Armstrong, enquanto showrunner, o caráter
autoral associado ao modelo de autoria por administração. Neste modelo de autoria, o
showrunner assume responsabilidade pelas decisões que formam a obra, exercendo papel de
liderança e supervisão (Mittell, 2015, p. 88).
Participando do gênero híbrido conhecido como comédia-dramática ou dramédia,
Succession combina elementos de ambos os gêneros numa narrativa coesa que coloca
personagens complexos, com maior desenvolvimento dentro do gênero dramático, em situações
desconfortáveis e constrangedoras, mais comuns em comédias. Essa receita proporciona
personagens que apresentam, simultaneamente, uma superficialidade satírica e uma densa carga
dramática. Dessa forma, apesar da seriedade da trama envolvendo a disputa familiar, o caráter
patético dos personagens os representa como anti-heróis sutis, conforme seus infortúnios os
afastam de seus objetivos.
O modo de representação observacional opera, em Succession, elevando o aspecto
tragicômico, através de uma câmera documental intrometida, que invade as situações e vagueia
entre elas captando não apenas os eventos, como também as expressões faciais e reações dos
personagens a esses eventos, com movimentos panorâmicos ágeis e zooms estratégicos. As
reações se tornam, assim, tão importantes para a narrativa quanto os próprios eventos.
Esse estilo de filmagem e edição é bastante característico em The Office, em que o modo
observacional e a inserção de entrevistas são utilizados para realçar o humor desconfortável da
série e a ridicularização de seus personagens e situações. A câmera capta, por exemplo, as
tentativas desajeitadas de Michael Scott de parecer engraçado, bem como as reações de
constrangimento dos outros personagens, informando que ele não é percebido como sendo
engraçado. Quando Michael profere falas ofensivas, os outros personagens reagem com certa
reprovação, condenando sutilmente os preconceitos de Michael sem que a série recorra a
didatismos.
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Apesar de não adotar a inserção de entrevistas, a estética observacional é mobilizada de
maneira similar em Succession, como orientação de que não devemos levar seus personagens
tão a sério. Assim como Michael, Kendall Roy se esforça para parecer descolado, mas as
reações dos personagens a sua volta revelam, na verdade, desconforto em relação às situações
em que ele se coloca. Alguns podem até chegar a rir, mas riem dele, não com ele; mais
especificamente, riem da tentativa desesperada de Kendall de parecer descolado. Um exemplo
acontece no episódio Dundee, quando Kendall apresenta um rap em homenagem a Logan
(figura 1). No entanto, fazendo justiça a sua participação na categoria dramática, Succession
utiliza, ao mesmo tempo, a falta de seriedade dos personagens como verniz de uma profunda
complexidade psicológica. Colocada em contexto, a performance de Kendall é mais uma de
suas tentativas de obter a aprovação do pai.
Figura 1 Personagens reagem ao rap de Kendall Roy.
Fonte: HBO
Em conjunto com o modo de representação observacional, Succession empreende uma
das estratégias narrativas observadas por Mittell: a moralidade relativa, através da justaposição
dos personagens. Nessa estratégia, a personalidade difícil e a moral cinzenta do protagonista
são contrastadas com antagonistas ainda mais difíceis e imorais. Se, nos exemplos analisados
por Mittell, essa justaposição consiste basicamente no contraste dos anti-heróis com
personagens mais vilanescos, Succession faz isso de maneira mais elaborada, como uma rede
intrincada de interações. A ausência de estratégias como flashbacks, por exemplo, coloca no
desenrolar do presente diegético a chave para compreender toda a complexidade psicológica
dos personagens, que se manifesta principalmente através das interações entre eles. Geralmente
hostis e permeadas de insultos e grosserias, essas interações acabam por revelar muito da
imoralidade dos personagens, especialmente no que diz respeito ao racismo, misoginia,
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homofobia, elitismo, entre outros preconceitos que tornam os Roy exemplos de personagens
desagradáveis.
Muitas dessas interações consistem na prática conhecida como roasting (traduzindo
literalmente, “assar” alguém). Praticar o roasting com alguém significa zombar de maneira
sarcástica e humorada, ressaltando peculiaridades e defeitos dessa pessoa. Apesar de
normalmente ser feito em contextos amistosos, em práticas humorísticas e eventos, onde se
espera que a pessoa a quem o roasting se direciona leve na esportiva, ele pode cruzar a linha da
brincadeira e se tornar ofensivo. No contexto tóxico e competitivo em que os Roy foram
condicionados, é por esse último caminho que o roasting costuma ir. Assim, os irmãos e os
outros personagens constantemente trocam ofensas e piadas maldosas, sendo está a principal
forma de interação entre eles.
O roasting é, então, utilizado de maneira a manifestar e elaborar as relações entre os
personagens em Succession. Sua proeminência na série é tanta, que a prática chega ser
reconhecida tanto diegeticamente, pela dimensão auto-reflexiva característica das séries
complexas, quanto em paratextos oficiais. O canal da HBO no YouTube liberou um conjunto
de vídeos intitulados The roast of […]” (e.g. The Roast of Kendall Roy), para cada um dos
personagens da série, compilando os diversos momentos em que eles são insultados (HBO,
2023), e destacando a natureza ofensiva da relação entre os Roy.
Na dimensão diegética, diversos momentos realçam como a prática faz parte não apenas
do cotidiano deles, como também da relação da família com o contexto midiático em torno dela.
O sexto episódio da segunda temporada (Argestes) apresenta um evento em que um comediante
pratica o roasting com os convidados, incluindo Logan Roy. Marcia, esposa de Logan, indaga:
“Eu não entendo essa tradição. Por que viemos para ser insultados? Como isso é
entretenimento?”, ao que Logan dá de ombros. Em The Disruption, terceiro episódio da terceira
temporada, Kendall é alvo de um programa de humor baseado no roasting.
Através dessa prática e de outras interações hostis, que desenvolvem as problemáticas
relações interpessoais entre os personagens, a moralidade relativa aparece. Ela surge não como
um mero contraste entre personalidades desagradáveis ou atos vilanescos de personagens
distintos, mas como uma rede complexa, onde a moralidade dos personagens é revelada de
maneira flexível, fazendo com que nossa fidelidade a eles seja fluida e contexto-dependente.
A inclinação liberal de Shiv, por exemplo, atribui a ela certa função de comentar e, por
vezes, rebater as falas problemáticas dos homens ao seu redor, demonstrando que a série não
fecha os olhos para os preconceitos de seus personagens. O modo observacional é mobilizado
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aqui, através de planos exibindo as reações e expressões de reprovação de Shiv. Ao mesmo
tempo, enquanto podemos ficar do lado de Shiv nos momentos em que ela é vítima da misoginia
e machismo dos homens ao seu redor, podemos, por outro lado, repreender a maneira tóxica
como ela trata o marido, Tom. Da mesma forma, enquanto as falas vulgares e preconceituosas
de Roman revelam suas profundas falhas de caráter, na relação opressiva com pai, é ele quem
se torna vítima. Nesse ciclo de ofensas e abusos, os personagens parecem querer terceirizar o
sofrimento a que são submetidos, transferindo-o a outro, como um mecanismo de defesa. Essa
flexibilidade moral gera, no espectador, uma fidelidade também flexível, dificultando tomar
partido de maneira totalizante.
A maleabilidade moral não se manifesta apenas na interação entre personagens, mas
também em momentos distintos dos arcos narrativos individuais. O arco de Shiv é um exemplo
interessante. Mesmo que ela se oponha ao conservadorismo e preconceitos de seus parentes e
colegas, seu alinhamento com políticos democratas e os princípios liberais que ela tanto preza
se mostram extremamente flexíveis, na medida em que ela começa a se envolver com a Waystar
e precisa se provar para Logan, se corrompendo no caminho. Apesar de condenar os abusos e
encobrimentos no setor de cruzeiros quando o escândalo vem à tona, ela coloca seus princípios
de lado quando é incumbida com a tarefa de silenciar uma das vítimas, manipulando-a a não
testemunhar contra sua família. Sua hipocrisia se torna aparente e a moral que ela acredita
possuir, maleável: ela defende os direitos e a voz das mulheres, desde que não se tornem
inconvenientes a seus próprios interesses.
A combinação entre o modo de representação observacional, o hibridismo de gênero
tragicômico e a estratégia da moralidade relativa enquanto uma rede complexa de relações
proporciona a Succession uma trama sofisticada populada de personagens complexos. Nesses
personagens moralmente maleáveis, podemos encontrar uma experiência vicária para refletir
sobre nossa própria moralidade ou, pelo menos, nutrir certa empatia e compreensão acerca da
complexidade humana diante das adversidades.
CONCLUSÃO
No âmbito da poética narrativa, a construção de anti-heróis sutis acontece, em
Succession, através da mobilização de recursos estéticos que permitem acentuar essa escolha
criativa. O anti-herói sutil, exemplificado pelo ensemble de Succession, se caracteriza não por
um desvio extremo às normas sociais e pela criminalidade, mas por falhas pessoais que o
colocam como obstáculo em seu próprio caminho e/ou por características consideradas
desagradáveis (arrogância, egoísmo, preconceitos).
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Esse tipo de anti-herói, sujeito às adversidades da própria vida e aos conflitos mais
íntimos, como aqueles entre familiares e colegas de trabalho, representa uma experiência mais
cotidiana e ordinária, comum à maioria dos espectadores, que não precisa se confrontar
constantemente com a justiça ou com máfias e gangues rivais. A vida cotidiana, com suas
alegrias e sofrimentos, é comum a todas as pessoas. A riqueza e o estilo de vida dos personagens
de Succession podem ser inacessíveis à maioria de nós, mas o caráter existencial aplicado na
construção desses personagens os ancora na mundanidade da qual todos nós participamos.
Não pretendemos, com isso, sugerir que o anti-herói extremo seja de difícil identificação
(pelo contrário, sua popularidade atesta a favor desse potencial), nem que ele não possa estar
imerso na cotidianidade. Afinal, Tony Soprano não lida apenas com as questões relacionadas à
famiglia representada pela máfia, mas também com aquelas de sua família sanguínea, bem
como quando essas duas se chocam. No entanto, os anti-heróis sutis, ilustrados pelos falhos
protagonistas de dramas como Mad Men, e pelos desagradáveis e preconceituosos protagonistas
de algumas comédias, como It’s Always Sunny in Philadelphia (nosso estudo de caso,
Succession, consegue participar simultaneamente de ambos os casos), podem estar mais
próximos do espectador e de pessoas a sua volta. Eles estão ambientados sobretudo no contexto
familiar e profissional imediato e são atormentados por questões mais individuais e
corriqueiras, como a busca por emprego e conexão, problemas familiares e amorosos, entre
outros aspectos da vida cotidiana.
Apesar dessa relação com o espectador não ter sido abordada neste trabalho, cujo foco esteve
mais nos elementos estético-formais intrínsecos à narrativa, acreditamos que as observações
aqui apresentadas, além de agregar ao campo da poética narrativa, podem proporcionar insights
úteis a pesquisas mais amplas e com pretensões mais extrínsecas, como as de caráter cultural e
espectatorial.
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