Daniel Velasco Leão
https://orcid.org/0000-0001-9957-6779
Professor, pesquisador, editor, cineasta e artista visual. Possui graduação em Comunicação Social -
Cinema pela Universidade Federal Fluminense (2009), mestrado em Comunicação pela
Universidade Federal Fluminense (2013) e doutorado em Artes Visuais pela Universidade do Estado
de Santa Catarina com período sanduíche na New York University (2020). Entre 2016 e 2018, atuou
como professor do curso de Cinema do Departamento de Artes da Universidade Federal de Santa
Catarina. Em 2023, foi professor de Direção de Fotografia na Universidade do Vale do Itajaí e de
Legislação Cultural no curso de Produção Cultural da Universidade Federal Fluminense.
Atualmente, é Pós-Doutorando em Literatura na Universidade Federal de Santa Catarina com apoio
do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico CNPq.
Teacher, researcher, editor, filmmaker, and visual artist. Holds a bachelor's degree in Social Communication -
Cinema from the Universidade Federal Fluminense (2009), a master's degree in Communication from the
Universidade Federal Fluminense (2013), and a Ph.D. in Visual Arts from the Universidade do Estado de Santa
Catarina with a research exchange period at New York University (2020). Between 2016 and 2018, served as
a professor in the Cinema program in the Department of Arts at the Universidade Federal de Santa Catarina. In
2023, taught Cinematography Direction at the Universidade do Vale do Itajaí and Cultural Legislation in the
Cultural Production program at the Universidade Federal Fluminense. Currently a Postdoctoral Researcher in
Literature at the Universidade Federal de Santa Catarina, supported by the National Council for Scientific and
Technological Development (CNPq).
.
Este artigo passou por avaliação por pares cega e software anti-plágio.
LICENÇA ATRIBUIÇÃO NÃO COMERCIAL 4.0 INTERNACIONAL CREATIVE COMMONS CC BY-NC
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DILMA ROUSSEFF E O DOCUMENTÁRIO COMO DEPOSIÇÃO:
NARRATIVA E ESTÉTICA EM DOZE FILMES SOBRE A MESMA
SENTENÇA
RESUMO
Ao longo do século XX, principalmente devido às consequências da Primeira e da Segunda Guerra O
objetivo deste artigo é discutir os procedimentos narrativos e estéticos do documentário tomando como
base os filmes sobre a deposição de Dilma Rousseff da presidência da república em 2016. A escolha
deste corpus se justifica pelo impeachment da primeira mulher presidenta do Brasil ter gerado um
fenômeno inaudito na história de nosso cinema: nunca tantos filmes foram realizados sobre o mesmo
tema em um período tão curto. Por meio da análise fílmica e da revisão bibliográfica, buscamos
compreender como essas obras se aproximam e diferenciam entre si e o que isso pode afirmar sobre o
cinema documentário contemporâneo. Ao longo do artigo, abordamos os principais fatores que explicam
esta profusão (como o desejo de contribuir para a percepção e a narrativa dos acontecimentos) e algumas
de suas consequências éticas e estéticas (como o pouco espaço ocupado pelas pessoas de outros
espectros políticos no interior dessas obras).
Palavras-chave: Cinema documentário. Documentário brasileiro contemporâneo. Dilma Rousseff.
Golpe de Estado. Impeachment.
DILMA ROUSSEFF AND DOCUMENTARY AS DEPOSITION: NARRATIVE AND
AESTHETICS IN TWELVE FILMS ABOUT THE SAME VERDICT
ABSTRACT
This essay aims to discuss the narrative and aesthetic procedures of documentary films based on the
impeachment of Dilma Rousseff as president of the republic in 2016. The choice of this corpus originates
from the fact that the impeachment of Brazil’s first female president generated an unprecedented
phenomenon in the history of our country: never before have so many films been made on the same
subject in such a short period of time. Through film analysis and bibliographical review, we seek to
understand how these works resemble and differ from each other and what this can say about
contemporary documentary cinema. Throughout the essay, we address the main factors that explain this
profusion (such as the desire to contribute to the perception and narrative of events) and some of its
ethical and aesthetic consequences (such as the limited space occupied by people from other political
spectrums within these works).
Keywords: Documentary cinema. Contemporary Brazilian documentary. Dilma Rousseff. Coup d'etat.
Impeachment.
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INTRODUÇÃO
Uma das marcas persistentes do cinema documentário é sua relação com eventos
históricos relevantes para um país (e, eventualmente, para o mundo): a Revolução Russa, a
Guerra Civil Espanhola, a Segunda Guerra Mundial, o Golpe de Estado no Chile, a Revolução
dos Cravos, as Greves do ABC no Brasil, as crises presidenciais no início dos anos 2000 na
Argentina, foram objetivo de numerosos filmes, por vezes realizados no calor da hora, por vezes
realizados anos, décadas depois, revisitando e escavando o passado. Não é estranho, portanto,
que dezenas de filmes, séries e reportagens audiovisuais de grande escopo tenham sido
realizados sobre os eventos que se sucederam no Brasil entre 2013 e 2022, década
particularmente desafortunada da política institucional brasileira.
A derrocada tem início com a lânguida resposta diante das Jornadas de Junho que,
deflagradas pelo aumento da passagem no transporte público, passam a aglutinar nas ruas de
dezenas de cidades do país multidões que reivindicam distintas e numerosas bandeiras, muitas
vezes antagônicas: emblematicamente, as bandeiras de esquerda hasteadas com orgulho por
manifestantes acostumados a tomarem as ruas, são despedaçadas por grupos que encarnam uma
outra forma, certamente raivosa, de fazer política. Sem seguir um curso retilíneo, em verdade
nada foi tão sinuoso como o caminho que se estendeu nesses anos, pode-se perceber alguma
continuidade entre a apática resposta do governo de Dilma Rousseff diante destes movimentos,
seu impeachment em 2016, a prisão de Lula e a eleição do governo de extrema-direita de Jair
Bolsonaro em 2018, um governo marcado por práticas milicianas, destruição dos consensos,
devastação ambiental, extermínio e genocídio dos povos originários (Brum, 2019).
Não é, portanto, espantoso que filmes tenham sido feitos: o que pode causar espanto é
o número de obras realizadas e a velocidade em que foram produzidas. Em um trabalho
minucioso, Carlos Alberto Mattos lista mais de cinquenta obras apenas no campo progressista
em seu livro/site Cinema contra o golpe (2018). Considerando obras de todos os espectros
políticos, podemos contar ao menos 12 filmes sobre a deposição de Dilma, que abordaremos
aqui de forma mais detida, em um período inferior a cinco anos um número que se amplia
consideravelmente se considerarmos outros documentários que o abordam como parte de uma
narrativa maior.
Dilma Rousseff presidiu o Brasil entre de janeiro de 2011 e 31 de agosto de 2016.
Esteve afastada entre 17 de abril deste ano, quando os deputados autorizaram a abertura do
processo de impeachment, até o último dia de agosto, quando os senadores a consideraram
culpada.
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Gerada em um cadinho de múltiplos fatores, a destituição de Dilma envolveu muitos
atores sociais, campanhas misóginas,
1
as maiores manifestações de rua da história do país, uma
investigação parcial e provavelmente criminosa do Ministério Público e uma cobertura
desequilibrada da grande mídia como demonstrado por Fernando Limongi (2023). De acordo
com o autor, o fiel da balança parece ter sido o desejo da classe política de se resguardar das
investigações contra suas práticas ilícitas, práticas muitas vezes sistêmicas e históricas,
partilhada por grande parte (mas não pela totalidade) dos políticos e que Dilma Rousseff não
teria agido para impedir (Limongi, 2023).
As redes sociais contribuíram para a formação de um ambiente social propício a
discussões intermináveis, muitas vezes reduzidas em suas possibilidades transformadoras ou
consensuais (em parte pelos papeis desempenhados pelos programadores de algoritmos de
exibição/ocultamento, propagação/cerceamento de conteúdo). A polarização política, dado
constituinte da sociedade brasileira, conheceu um novo delineamento. Mas, de acordo com
Angela Alonso (2023), este novo delineamento também decorreu de uma troca de turnos nas
ruas que, historicamente ocupada pela esquerda, se viram tomadas por uma direita que,
claramente incomodada com a diminuição de alguns dos privilégios de que gozavam,
reivindicava o estado nimo, pautas morais conservadoras, valendo-se da bandeira contra a
corrupção como seu elemento congregador principal. Junho de 2013 é um marco neste sentido.
Não obstante ter sido marcado pela presença tanto de grupos à esquerda quanto à direita do
governo (descritos de forma minuciosa em Alonso, 2023),
Apenas uma pequena parcela da esquerda democrática que não tinha
capacidade de alterar os rumos institucionais viu em Junho um potencial de
transformação da democracia brasileira, viu naquela energia social dispersa a
possibilidade de deixar o pemedebismo para trás. Quanto às “novas direitas”,
que vinham se organizando dez anos antes de Junho e, por isso, tinham
adquirido massa crítica considerável, notaram ali uma oportunidade de
confrontar diretamente o sistema político (Nobre, 2022, p. 18).
Tudo isso contribuiu para a destituição, assim como as denúncias de corrupção contra
alguns de seus aliados. Se seguirmos o que é apontado nas obras mencionadas de Angela Alonso
1
Como observamos em outra análise, essas campanhas foram atravessadas por esteretipos sexistas” (Carniel & Ruggi, 2018, p. 541) que
exploravam a figura de Dilma como “um exemplar da espcie’ mulher” (Cardoso e Souza, 2016, p. 63) associada à loucura, à histeria e, em
alguns casos, à prostituio e ao estupro (Lemos, 2017, p. 30), procedimento percebido como “afronta às mulheres e suas conquistas,
representadas pela figura da chefe de estado” (Amorin, Carvalho e Santos, 2017, p. 9). Devulsky (2016) demonstra como parte considerável
dessas aes foi marcada por uma abordagem que buscava remeter Rousseff ao espao privado, distanciando-a do espao pblico prprio a
seu cargo, uma estratgia tpica do backlash antifeminista da Nova Direita estadunidense dos anos 1990 (Faludi, 2006). Um forte argumento a
favor desta teoria a ausncia de mulheres no ministrio formado pelo sucessor de Rousseff, Michel Temer, cuja esposa foi elogiosamente
descrita na revista de maior circulao do pas, ainda durante o processo de impeachment de Dilma, como “bela, recatada e do lar” (Linhares,
2016).
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(2023), Fernando Limongi (2023), Marcos Nobre (2022) e nos documentários que iremos
analisar, poderíamos ainda acrescentar uma lista bastante longa de fatores como a crise
internacional; as medidas controversas, a falta de governabilidade, as pedaladas fiscais; a
criação da Comissão Nacional da Verdade para investigar crimes durante a ditadura militar; a
determinação de um maior controle sobre operações e lucros bancários. A lista poderia ser mais
longa, assim como poderia incluir muitos nomes: Eduardo Cunha, Sergio Moro, Aécio Neves,
Lula, Fernando Henrique Cardoso, Gleisi Hoffman, Janaína Paschoal, José Eduardo Cardozo,
Renan Calheiros, Carlos Marun… alm de celebridades e de milhes de pessoas que iam às
ruas.
A complexidade do processo pode ser também percebida na disputa de narrativas que
dele decorreu: foi um processo legítimo ou uma parlamentada, isto é, um golpe parlamentar?
De fato, grande parte dos filmes que vamos analisar busca responder a esta pergunta. Ainda
mais significativa é a dificuldade de apontar o início e o fim do impeachment/golpes. Iniciou
quando o presidente da Câmara aceitou que um dos muitos pedidos fosse analisado pela
Comissão de Constituição e Justiça? ou quando o partido da presidenta se negou a votar de
forma favorável ao presidente da Câmara em processo que resultaria na cassação de seu
mandato? ou quando um pequeno grupo redigiu o pedido de impeachment? Ou quando Dilma
se recusou a intervir nas investigações da Polícia Federal? Ou quando houve condições para
que a sociedade acreditasse que um tal pedido era benfazejo e viável, remontando assim à
corrupção de entes de governos anteriores, de medidas do Supremo Tribunal Federal
(desvinculadas do governo) como o reconhecimento do casamento LGBT, etc.? Todas essas
possibilidades, e ainda outras, são levantadas nos diversos filmes realizados. E o processo
termina quando sua abertura é autorizada na Câmara? Ao final do julgamento no Senado? Ou
termina com o desmonte de uma certa política, com a prisão de Lula, com o desmonte das
políticas do governo quando assume o vice, com a eleição de Bolsonaro, ao longo do governo
de Bolsonaro? Ou termina com a volta de Lula ao poder?
A listagem, incompleta e algo cansativa, além de antecipar parte da análise que faremos
buscando familiarizar o leitor e a leitora que desconheçam de todo o processo, serve também
para demonstrar a impossibilidade de uma representação inequívoca e completa do evento. Ao
representá-lo, será preciso fazer escolhas, deixar de lado alguns fatores e personagens,
representar outros de forma minuciosa e, ao longo deste caminho, toda escolha, a um
tempo ideológica e estética, terá implicações na forma como o impeachment será exposto à
compreensão. Algumas dessas escolhas antecedem as filmagens, sendo conscientemente
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determinantes do tipo de material a ser produzido; outras vezes, acontecem apenas na edição.
Por isso, a análise dos filmes será por não muito extensas reflexões a respeito do modo como o
cinema documentário se vale de procedimentos narrativos e ficcionais para sua composição.
INTERPRETAÇÃO, REPRESENTAÇÃO, FICÇÃO NO DOCUMENTÁRIO
O documentário pode ser considerado uma representação (quase sempre) narrativa
realizada a partir de imagens (visuais e sonoras) que rendem conta da realidade de modo parcial.
É certo que estas imagens portam “uma inscrio verdadeira” (Comolli, 2008, p. 111) e “um
trao autntico do mundo histrico” (Nichols, 1991, p. 118), mas seu registro ocorre por meio
de equipamentos engendrados de acordo com determinadas noções de real historicamente
determinadas em relação às imagens visuais e sonoras (Aumont, 2006, p. 182; Altman, 1992,
pp. 24-25). Não menos importante, estes registros, assim como sua edição, são mediados pelas
escolhas éticas, estéticas e epistemológicas do(a) diretor(a) e de sua equipe. Estas escolhas
levaram Guy Gauthier a apontar uma “quota essencial” de criatividade na realizao flmica
(1995, pp. 112-114); Comolli, a inequívoca a subjetividade do documentário (2008, pp. 173-
174); e Nöel Carroll, a operação da construção de asserções sobre o mundo histórico como um
procedimento fundamental do pacto documentário (1997, p. 73). Assim, seria ingenuidade
supor que a inscrição verdadeira e o traço autêntico do mundo histórico seriam hegemônicos
em relação aos demais fatores envolvidos na criação do filme documentário. A rigor, tais fatores
impregnam tanto ou até mais a inscrição (e sua exposição) quanto a realidade e são, em grande
parte, procedimentos de ordem ficcional.
Isto é particularmente evidente se considerarmos, como é costume em certa
historiografia, que o primeiro documentário é Nanook of the North de Robert Flaherty (1922).
Quem aponta que o documentário nasceu com Flaherty afirmando como corolário que antes
havia “protodocumentários” afiança que o documentário se alicerça na aliança entre os
discursos fílmicos não-ficcionais e a linguagem clássico-narrativa, aliança que, de acordo com
Mariana Baltar, “estrutura as bases do processo de institucionalizao do documentário,
fazendo circular filmes que, de certa maneira, compartilham do apelo ao público e que, mais
importante, assumem a herança do universo não-ficcional, preservando-se, assim, como
discursos sobre o mundo real” (2007, p. 42). Percebe-se a valorização destes dois aspectos neste
trecho da resenha de Sherwood a respeito de Nanook:
Here was drama, rendered far more vital than any trumped-up drama could
ever be by the fact that it was all real. Nanook was no playboy, enacting a
part which would be forgotten as soon as the greasepaint had been rubbed
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off; he was himself an Eskimo, struggling to survive. The North was no
mechanical affair of wind machines and paper snow; it was the North, cruel
and incredibly strong (Sherwood, 1979, p. 16).
Valor de documento amalgamado e alcançado por procedimentos ficcionais: decorre em
parte desse caráter ambíguo a dificuldade de definir esta forma de fazer cinema. O próprio
termo “documentário”, aliás, mal-amanhado, ou nas palavras de um de seus primeiros
entusiastas, John Grierson, “a clumsy description” (1998, p. 81), “uma palavra pouco elegante,
sugestiva de pedagogia e at, em alguns casos, de medicina” (apud Da-Rin, 2006, pp. 90-91),
e de todo inapropriado para denominar uma escola ou uma forma de fazer cinema seja porque
todo filme tem um valor de documento (quando por mais nada, por mostrar como se fazia filmes
num dado momento), seja porque serve para distinguir um modo de fazer filmes, ou um
conjunto de modos, de outros modos que também compartilham, mesmo no sentido estrito que
Grierson lhe quis dar, o valor documentário. Por outro lado, tampouco é satisfatório nos
referirmos ao documentário como “no-ficcional” na medida em que, igual e inversamente,
todo filme comporta uma dimensão ficcional. Compartilhando assim seu valor de documento
com outros filmes e o valor ficcional de alguns destes, o cinema documentário ainda não
conseguiu ser definido de forma precisa. Cezar Migliorin resume o pensamento espalhado por
grande parte do campo teórico do documentário neste sentido: “Se digo documentário no sei
do que falo, pelo menos o exatamente, mas ao mesmo tempo ele existe e insiste, se
transformando a cada filme” (2010, p. 9). Evitando entrar nesta discusso, podemos nos situar
em um único ponto, considerando o documentário tal como é percebido em sentido amplo
como uma obra que representa algo da realidade de modo distinto do cinema romanesco. Sobre
a primeira parte desta afirmação, cabe compreender a representação e depois abordar algumas
qualidades da representação documentária.
Nelson Goodman (2006) afirma que o núcleo da representação é a denotação: para
representar um objeto, a imagem tem que a um só tempo ocupar seu lugar e referir-se a ele. A
representação não poderia ser uma cópia da realidade qualquer objeto tem tantos aspectos
que não se poderia representá-los todos de uma vez. Como “nenhum o modo de ser do objeto”,
a representação não pode ser um reflexo, nem se basear na semelhança, mas antes uma
apoderação e uma fabricação ela envolve classificar, escolher, inventar (Goodman, 2006, p.
38-41). “Se representar  uma questo de classificar objetos e no de os imitar, de caracterizar
e no de copiar, no uma questo de relato passivo. (…) A representao e a descrio
acarretam, pois, a organização, e esta acarreta muitas vezes aquelas” (Goodman, 2006, p. 62).
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É por isso que Goodman dirá que “Ao representar um objeto, no copiamos tal traduo ou
interpretação alcançamo-la” (2006, p. 40-41).
Isto está de acordo com o modo mesmo como percebemos a realidade. Num nível ainda
anterior a esta discusso, Ernest Gombrich nota que “ver no apenas registrar”, mas “uma
reao de todo o organismo à luz que estimula o fundo do olho” (2007, p. 252): “A distinção
entre sensao e percepo, plausvel como parecia, teve de ser abandonada” (Gombrich, 2007,
p. 252). E a percepo, ele dirá logo adiante, “está ligada a expectativas e, em consequncia, a
comparaes” (Gombrich, 2007, p. 254). A partir dessas ideias gombrichianas, Goodman
afirma que “[o] olhar chega sempre atrasado ao trabalho, obcecado com o seu prprio passado
e com velhas e novas insinuações do ouvido, do nariz, da língua, dos dedos, do coração e do
crebro” (2006, p. 39-40).
Alguns teóricos do documentário subscrevem tais considerações que apontam o que
conhecemos da realidade como uma interpretação e a representação como uma invenção que
de alguma maneira alcança a interpretação da realidade, muitas vezes prévia à própria obra. Um
deles, Guy Gauthier, observa:
Tout cinéaste, comme tout auteur, a derrière lui une expérience, des idées,
qu’il infuse dans ses films. (…) Le paradoxe serait de penser que le
documentariste en tournage est accrédité, par quelque privilège
incompréhensible, d’un regard neuf et impassible. Il emmène avec lui son
expérience, son savoir, et quelquefois aussi, son imaginaire mystificateur
(Gauthier, 1995, p. 122).
A representação no cinema documentário tem, entretanto, especificidades. Em primeiro
lugar, a ideia de uma inscrição verdadeira que se liga às noções um tanto vagas de
autenticidade e honestidade. Segundo Edgar Morin, “há uma verdade que o cinema romanesco
no pode captar e que  a autenticidade do vivido” (Morin apud Da-Rin, 2006, p. 107). Está de
acordo Gauthier para quem l’authenticité du tournage est le problème central du
documentaire” (1995, p. 112). A isso, devemos acrescentar a necessidade, por mais imprecisa
que esta noção possa ser, de uma honestidade do filme em sua edição para que essa
autenticidade continue a caracterizar o documentário. Deve-se atentar, ainda, que a noção de
honestidade e autenticidade varia ao longo da história, se manifestando em cada obra e em cada
forma de assisti-la de uma maneira diferente: deste modo, podemos compreender que Nanook,
por exemplo, fora para o documentarista Alberto Cavalcanti la vie elle-même (Cavalcanti apud
Teixeira, 2004, p. 13), enquanto para Consuelo Lins, em seu estudo da obra de Eduardo
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Coutinho, Nanook é, ao contrário, a encarnação do todos os esquimós em apenas um (2004, p.
69).
Essa autenticidade em nada se aproxima de uma busca de captar a realidade tal como
ela é. Ao menos não necessariamente, já que algumas pessoas buscam sobretudo a partir do
advento da câmera leve e passível de ser sincronizada com o gravador retratar “a vida
observada pela câmera e não, como no caso de muitos documentaristas, a vida recriada para a
câmera” (Reynolds, 1976, p. 401). Num nvel bastante preliminar desta discusso, pode-se
afirmar que a câmera altera qualquer realidade por sua própria presença e, também, observar
que alterar o mundo histórico para e por conta do registro documental é procedimento tanto
banal Vladimir Carvalho destelhando uma casa durante as filmagens de O país de São Saruê
(1971) para ter a iluminação necessária para o registro de uma entrevista quanto expressivo:
Durante a filmagem de Borinage [Misére au Borinage, Joris Ivens e Henri
Storck, 1933] nós às vezes tínhamos de destruir alguma beleza superficial
indesejada que ocorria quando não a almejávamos. Quando a sombra definida
da janela dos barracões caía sobre os trapos sujos ou os pratos de uma mesa o
efeito agradável da sombra realmente destruía o efeito da sujeira que
queríamos, e por isso enfraquecíamos as bordas da sombra. Nosso objetivo
era impedir que efeitos fotográficos agradáveis distraíssem a audiência das
verdades desagradáveis que estávamos mostrando (Ivens apud em Renov,
2004, p. 249).
Também a montagem é essencial para a representação específica do documentário
porque é através dela que se organiza aquilo que se filmou. A montagem influi decisivamente
na representação da realidade.
De modo semelhante às múltiplas formas de se filmar a realidade, também a montagem
é um procedimento que entendido de forma distinta: para diretores como Perrault, ela dever ser
un prolongement de l’expérience vécue et une opération de mise en ordre, qui n’altère pas en
profondeur l’authenticité du tournage(Gauthier, 1995, p. 139). Para outros, como Johan van
der Keuken, ela une véritable réinterprétation du primier cycle du tournage(apud Gauthier,
1995, p. 141). A montagem, se sabe, cria ou pode criar sentidos, agregar às imagens um valor
que lhes é estranho etc. Paul Rotha insiste nesta questão que, ademais, foi examinada pelo
primeiro terico da montagem, o sovitico Lev Kuleshov: “The content of the shots in itself is
not so important as is the joining of two shots of different content and the method of their
connection and their alternation” (Kuleshov, 1974, p. 46-47).
Não pretendemos nos aprofundar nestas questões, mas devemos mencionar que é
evidente que se tais percepções implicariam em posturas diversas diante dos fatos e objetos
referidos e representados, elas não legitimam a completa leviandade diante do que foi
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registrado. Stephen Schneider afirma que suas falas em um documentário foram manipuladas
de modo a expressar algo contrário ao que efetivamente disse, o que o levou a desqualificar o
filme Not evil, just wrong de Ann McElhinney (2009) como desonesto (cf. Alburquerque,
2009). Não se trata aí, como se percebe, de uma montagem aquém da realidade, ou que
privilegia um aspecto menor em detrimento de um aspecto maior; antes o que Schneider aponta
é para um procedimento que contra-representa a realidade.
OS FILMES SOBRE A DEPOSIÇÃO DE DILMA ROUSSEFF
ao menos cinco fatores que explicam a realização de tantos documentários sobre este
evento. Em primeiro lugar, sua inequívoca relevância histórica. Em segundo lugar, a narrativa
intrínseca ao processo de deposição passível de ser assimilada como estrutura fílmica. Estes
dois fatores, entretanto, poderiam justificar a realização de diversos documentários
contemporâneos a respeito do impeachment do presidente Fernando Collor de Melo em 1992.
No entanto, nenhum filme foi então realizado sobre ele. As condições de realização audiovisual
e a especificidade do processo contra Dilma devem pois, forçosamente, serem tomados em
conta. Como terceiro fator, podemos apontar o vigor da atividade cinematográfica no Brasil
impulsionada pelo desenvolvimento do mercado interno, por leis que determinavam uma cota
para produções nacionais em televisões por assinatura, por editais culturais e, também, pelo
desenvolvimento da tecnologia digital. Dois outros fatores vinculam-se à especificidade da
destituição de Dilma: a maior parte dos filmes realizados buscam apresentar argumentos a favor
ou contra as teses da ocorrência de um golpe de estado parlamentar; finalmente, que se notar
o grande número de obras dirigidas por mulheres, o que pode nos levar a apontar como aspecto
importante deste fenômeno uma reação às violentas e misóginas campanhas pelo impeachment
de Rousseff.
Filme Manifesto: o Golpe de Estado (2016), primeiro filme sobre o processo, foi
realizado por Paula Fabiana e exibido meses depois da destituição de Dilma no Festival
Internacional del Nuevo Cine Latinoamericano em Havana. Realizado no calor da hora,
vinculado à tradição do documentário latino-americano moderno, o filme apresenta-se no
festival com uma sinopse de apenas duas linhas: Documental que denuncia el golpe de Estado
ocurrido recientemente en Brasil a través de la mirada de una militante en la oposición”. O
filme tem início nas manifestações de junho de 2013 e termina com a autorização abertura do
impeachment pela câmera, com um prólogo que mostra o governo Temer sobretudo pela
presença de militares nas ruas do Rio de Janeiro (em plenos Jogos Olímpicos) e pelo
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fechamento do Ministério da Cultura e a reação da comunidade. Trata-se de um dos filmes mais
precários sobre o golpe e um dos de maior interesse: sem narração ou entrevistas, Paula segue
pelas manifestações buscando compreender o que se passa em 2013 e, posteriormente buscando
retratar quem está a seu lado nas manifestações contrárias à destituição de Dilma e quem está
do outro lado nas manifestações favoráveis (esses planos em menor quantidade); tudo isso é
permeado pela seleção de material de arquivo retirado da internet, com pouca resolução, uma
pesquisa realizada também no calor da hora e que é notável por incorporar em grande parte
personagens femininas. Em comparação com outros filmes, Filme-Manifesto se destaca
também por nunca adentrar os palácios de poder: Paula está distante deles.
O segundo filme, Brasil, o grande salto para trás (Brésil: Le grand bond en arrière de
Frédérique Zingaro e Mathilde Bonnassieux, 2017), é um documentário jornalístico
inteiramente distinto. Exibido em festivais internacionais e no canal franco-alemão Arte ainda
em 2017, o documentário foi realizado por duas correspondentes estrangeiras no país
compartilhando um dos objetivos de Paula: mostrar ao mundo o que estava acontecendo no
Brasil. Em O grande salto para trás percebe-se a formatação expositiva dentro de padrões
jornalísticos, a construção de uma obra voltada para o público estrangeiro, a incorporação de
clichês (os cartões postais, a música popular, imagens um tanto apelativas da pobreza) e a
possibilidade de um trânsito longo e distante. O filme, próximo da vertente dominante do
cinema documentário tambm chamado de “expositivo” , se estrutura a partir de dois
pontos de vista: aquele das diretoras e aquele do escritor, humorista e jornalista Gregório
Duvivier que, bastante semelhante ao delas, é elegido como personagem auxiliar de uma
narradora desengajada (em voz over) que conduz o espectador pelos quatro cantos do país.
Esses dois pontos de vista coincidem no essencial: “Há uma classe dominante que faz
absolutamente tudo o que quer. Ou seja, uma presidente foi destituída para que a corrupção
continue, e para que essa classe continue fazendo o que quer” (Zingaro apud Franco, 2017). A
tese central do filme é que o impeachment foi um golpe parlamentar dado por deputados
federais associados às igrejas evangélicas, ao agronegócio e aos interesses financeiros. Sobre a
forma do documentário, ela pode ser descrita como um documentário dissertativo
argumentativo que trata, por um lado, as motivações e os aliados do impeachment de Dilma
Rousseff e a consequência de mudança de políticas federais com sua queda e, por outro, sobre
a maneira como a corrupção e a crise no país levaram eleitores a acreditar menos nos partidos
e mais nas igrejas e nas pessoas. A voz de narradora que conduz a narrativa apresenta fatos, se
sobrepõe a imagens de arquivo e tomadas, muitas vezes retiradas de contexto, que servem como
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base para uma contextualização. Por exemplo, a desilusão é mostrada numa vendedora de
comida que se senta entediada, sem clientes; mas também por um torcedor do Flamengo que lê
um jornal esportivo que tem em sua capa o mapa da América Latina tingido de negro. A
despeito de tudo isso, o filme consegue expressar uma desesperança parcialmente verdadeira,
terminando com uma esperança que parece inapropriada ou leviana. Em um embate entre jovens
progressistas e o bispo da maior congregação neopentecostal do país, Marcelo Crivella, o filme
opta por terminar com a esperança quando é este o vencedor das eleições, num prenúncio dos
anos bolsonaristas prestes a se iniciarem.
Em O muro (2017), Lula Buarque de Holanda realiza um trabalho sofisticado: por meio
de uma seleção pertinente de especialistas, como Maria Rita Kehl, Laura Barbosa de Carvalho,
Luiz Eduardo Soares, James Green, Monica Baumgarten de bolle, Ronaldo lemos, o filme
desenvolve uma tese segundo a qual o impeachment foi causado sobretudo por interesses
econômicos menciona rapidamente o papel da mídia, e deixa inteiramente de lado questões
da esfera do costume. Esse filme busca também situar o processo dentro do escopo da ascensão
da extrema direita no mundo. A caracterização do muro como elemento segregador cansa ao
ser repetido tantas vezes, assim como o ir e vir entre os dois grupos também, que impede a
compreensão de sua própria percepção do processo, que fica a cargo da interpretação dos
especialistas. Assim, o próprio filme parece erguer um muro entre a equipe e as pessoas: pode-
se dizer que uma recusa explícita ao diálogo, uma espécie de questionamento que na verdade
um “fale sua opinio”. O filme contorna de forma notável o excesso de sincronicidade nas
entrevistas ao colocar algumas dessas vozes (de especialistas ou transeuntes) sobres as imagens
das ruas, ainda que estas busquem de forma muito frequente ilustrar aquilo que é dito. Esse
recurso, utilizado com maestria em filmes com Senna (Asif Kapadia, 2010), aqui resultam numa
desindividualização expressando mais uma vez a opção pela ausência de diálogo. O filme
articula, ainda, um conjunto de depoimentos de pessoas que estão à margem da polarização.
Um domingo de 53 horas (Cristiano Vieira, 2017) reconstitui o dia da votação do
afastamento de Dilma, 17 de abril de 2016. Se a votação ocorreu na tarde de domingo, a sessão
foi iniciada na sexta-feira anterior daí o título da obra. O filme desde o começo parte da
divisão do país em dois lados, pela incorporação de uma narração que remonta a um dos
clássicos futebolísticos de maior rivalidade no país que conduz com continuidade a montagem
em contraponto. Depois de aberta a sessão, o filme passa a se dedicar a explicar as
circunstâncias históricas e políticas vividas no país, recorrendo a especialistas. Repassam-se os
erros do governo, a eleição de Cunha e suas chantagens se muitos outros aspectos são
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levantados, não há dúvida de que o que é mais tematizado é a disputa Cunha x Dilma. Um
mérito indiscutível do filme em relação aos demais é dar tempo para que manifestantes dos dois
lados se coloquem, expressem o que pensam, algo que é perceptível também pelo espaço que o
filme reserva a um dos fundadores de um dos movimentos favoráveis ao impeachment e,
também, a um casal de vendedores ambulantes que trabalha nas manifestações. Por vezes, eles
desempenham o papel de “voz da experincia” — como, por exemplo, afirmam a corrupção de
Dilma atribuindo como sua fonte o Jornal Nacional pouco depois de Paulo Moreira Lima
destacar o papel da imprensa na formação da consciência popular sobre o impeachment. Trata-
se de uma obra notável também porque dá espaço aos jornalistas se defenderem desta acusação
e exporem sua percepção sobre o processo e sobre a cobertura que fizeram. Além disso, expõe
com pontiaguda dureza a traição sofrida por Dilma, demorando-se no caso de um de seus
ministros que, exonerado para votar a seu favor, trai sua confiança.
Já vimos esse filme (Boca Migotto, 2017) é um documentário de entrevista que aborda
o evento através de análises, exemplos e contextualizações de militantes, historiadores,
escritores etc. As entrevistas são canalizadoras e não catalisadoras e, realizadas em lugares
públicos, grande parte na mesma varanda, poderiam citadas como exemplo para parte do
empobrecimento imagético citado em Jean Claude Bernardet em seu artigo sobre as entrevistas
no documentário brasileiro (2003). Nos encontros entre a célula de filmagem e os organismos
autônomos apenas a inevitável influência das condições de filmagem sobre o discurso,
influência que se busca manter a menor possível no sentido interior e a maior possível no
sentido de narrativo nem sinal, portanto, das metamorfoses a que se refere Edgar Morin,
nem da invenção de um personagem a que se refere Eduardo Coutinho. Ainda que,
naturalmente, a atuação sempre exista. Pela distância entre esses modos do encontro, foi
proposta uma distino do “Modo de representao interativo”, cunhado por Bill Nichols
(1993), entre o modo interativo tênue e dinâmico (Leão, 2009). Este seria, sem dúvida,
pertencente ao modo tênue. A montagem se estrutura para criar asserções coerentes sobre o que
se passou, entremeando discursos de modo a confirmar certas afirmações por seus
agrupamentos com outras suficientemente diferentes para não ser enfadonhos, suficientemente
semelhantes para conferir a sensação de uma continuidade. Entre esses blocos temáticos, o
filme exibe pequenos trechos de imagens de arquivo (próprias ou apropriadas) que têm o
objetivo de confirmar o que foi dito ou simplesmente fazer as vezes de intervalo. Isso faz com
que o filme, apesar de composto por muitas vozes, tenda à monofonia, com cada frase de uma
pessoa, com suas diferentes vozes, histórias e experiências, se confundindo com a voz do filme
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(Nichols, 2005). Isso, no entanto, não é absoluto, seja porque três participantes falam a partir
de uma experiência pessoal, seja porque Giba Assis e especialmente Juremir Machado
conferem ao filme um coloquialismo ou uma perspicácia que derivam de estarem muito à
vontade ou de uma visão de mundo inteiramente idiossincrática e particular. Uma de suas
características que o distingue dos demais filmes é estabelecer um paralelo reiterado com o
quadro político de 1954 e de 1964 (respectivamente, a tentativa de golpe contra Getúlio Vargas
e a efetivação do golpe militar contra João Goulart).
Excelentíssimos de Douglas Duartes (2018) é o filme mais abrangente e ambicioso sobre
o impeachment. Como muitos, Douglas aponta que o marco inicial do impeachment está no
questionamento das eleições presidenciais, cujo resultado foi posto em dúvida por Aécio Neves
(2º lugar por uma margem estreita de votos). Trata-se de um filme que conta a história de 2014
até 2017, com um trabalho de pesquisa exaustivo, mostrado em paralelo ao trabalho cotidiano
da Câmara dos Deputados. A intenção do filme parece ser compreender os atores políticos do
impeachment em sua passagem pela Câmara, o que faz com habilidade e sem aparar arestas.
Certamente, muito que poderia ser cortado em nome da síntese, mas a síntese foi
corretamente percebida como problemática uma sequência de imagens não se reduz à
informação mais evidente que transmite. Dque seja ótimo que certos planos e sequências
durem mais do que o estritamente necessário, ou que nos demoremos em sessões das bancadas
da Bíblia e da Bala, com suas reuniões que se prolongam, seus gestuais e suas afirmações à
margem do processo de impeachment propriamente, mas que o tornam possível e
compreensvel à imagem e semelhana dos excelentssimos” deputados. O filme bem
sucedido em sua tese que nunca enuncia, mas lentamente compõe: o processo de impeachment,
sem qualquer fundamento jurídico, foi um golpe orquestrado por motivos políticos e por
políticos corruptos, violentos, profissionais, de má-fé.
No mesmo ano, é lançado O processo, de Maria Augusta Ramos, uma das mais notáveis
documentaristas brasileiras. À exemplo de seus dois filmes de maior repercussão, Justiça
(2004) e Juízo (2008), Ramos busca o que de judicial no processo de impeachment, um
processo eminentemente político (assim como Dilma será absolvida anos depois de sua
condenação, Fernando Collor de Mello foi absolvido). Esta parte ocorre no Senado e se inicia
após a traumática sessão da Câmara. Se antes o jogo parecera passível de ser vencido, agora o
desânimo domina os manifestantes favoráveis à Dilma, e o entusiasmo aqueles que desejam sua
saída. O filme mostra apenas os trâmites do processo, trâmites morosos, burocráticos, apenas
raras vezes gerando exasperações ou palavras vigorosas. O filme não se vale de narrações e,
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depois de um breve prólogo, evita utilizar material de arquivo recorrendo a ele apenas para
agregar momentos públicos não registrados pela câmera da equipe mas transmitido pela TV
Senado ou, fato singular, para mostrar uma reportagem televisiva sobre a prisão do marido da
personagem central, Gleisi Hoffman. Ao contrário dos demais filmes, não se sente aqui
qualquer agitação na rua ou torpor: tudo é calmo, tudo vai se desenrolando de forma inalterável
dentro dos marcos institucionais peculiares àquele espaço. Para essa sensação contribui a
fotografia que executa com enorme acurácia o registro dos momentos importantes e abundantes
imagens em que nada acontece: dezenas de microfones em um púlpito sem ninguém; jornalistas
exauridos sentados no chão do Senado; seguranças caminhando diante de fachadas vazias;
pontos de ônibus diante do Congresso em que trabalhadores esperam a condução. O dispositivo
do filme é coerente com isto ao restringir-se ao Senado, e filmar reuniões dos bastidores dos
senadores do Partido dos Trabalhadores que faziam parte daquela comissão, e evitar a voz over
e material de arquivo que não essencial à compreensão, mostra a distância que a população se
encontra daquilo. Seus túneis, suas vitrines, seus mediadores: ali estão, distanciando, afastando
os subterrâneos. Ou, talvez, possamos dizer que o dispositivo do filme contribui ele mesmo
para a geração de uma percepção e compreensão bastante peculiar sobre o processo.
GOLPE de Guilherme Castro e Luiz Alberto Cassol (2018) faz uma cronologia e
reflexão sobre os fatos que culminaram na deposição de Dilma e na prisão de Lula. Trata-se de
um filme criterioso que tem por objetivo apresentar uma narrativa consistente e que contribua
para a discussão política assim como vimos esse filme (2017), é um documentário de
entrevistas, cabeças falantes, que tem como um de seus méritos principais a seleção de
personagens carismáticos. Como afirma em sua cartela, “[o] filme um registro, leitura e
reflexo sobre fatos atuais de uma sociedade complexa e midiatizada”. As notcias e os fatos
sociais manifestações, entrevistas, acontecimentos aparecem através da filmagem de
páginas da internet incluindo vídeos e fotos. O início é algo frenético, buscando emular a
experiência dos usuários, com clipes de imagens midiáticas que logo serão interpostas entre
uma ligeira seleção de frases de dez segundos de muitos dos entrevistados. Buscando um maior
engajamento, uma música acompanha essas fragmentos e permeará muitas partes do filme.
Assistimos, de forma sucessiva, um conjunto de pessoas que abordam os fatos a partir de sua
perspectiva trata-se de um dos filmes mais complexos em sua análise das razões que levaram
ao golpe, abordando os erros de Dilma, o caráter caráter misógino das manifestações, a
intransigência da oposição, a corrupção, os avanços sociais e o incômodo da classe média, a
mudança geopolítica, a crise do capitalismo, a importância da descoberta das reservas de pré-
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sal, a perda das ruas, o fim da ressaca da ditadura, a burocratização do movimento social, a
subserviência do jornalismo ao Ministério Público, as novas mídias, o vírus do fascismo, o
papel do judiciário e a queda da autoestima do trabalhador brasileiro.
Tchau, querida (2019) de Gustavo Aranda e Vinícius Segalla foi feito com câmera
sempre na mão, som quase sempre direto. Realizado por uma equipe dos Jornalistas Livres,
apresenta imagens realizadas durante a votação da abertura do processo de impeachment e nos
dias que a antecederam. O filme se estrutura em torno da ideia de uma luta entre o povo genuíno,
em busca da justiça social e da verdade e as elites preconceituosas, estúpidas e meio birutas.
Busca esta caracterização a todo momento de modo que, um observador que nada conhecesse
da realidade brasileira e confiasse no filme, poderia afirmar que foi apenas isto que aconteceu.
O que orienta a filmagem e a montagem são as oposições: o acampamento dos movimentos
sociais (com samba, mutirão para preparação do almoço, debates com personalidades de
esquerda) e o acampamento dos manifestantes pró-impeachment (com stand da Fiat, DJ
tocando música eletrônica, pessoas exóticas). O título da obra é uma tentativa de reapropriação
da frase afetuosa com que Lula se despediu de Dilma em uma conversa ilegalmente gravada e
divulgada; a frase foi apropriada pelos manifestantes e políticos favoráveis ao impeachment.
O inverso desta obra é Não vai ter golpe! O nascimento de um Brasil livre (Alexandre
Santos e Fred Rauh, 2019) que, igualmente, busca inverter o sentido de uma palavra de ordem,
desta vez para sinalizar que não houve um golpe e sim um processo legítimo, apoiado pela
população e que foi capitaneado pelo Movimento Brasil Livre. Trata-se de um filme expositivo
realizado pelo próprio MBL que demonstra como ele teria sido o responsável pelas articulações
decisivas que levaram ao impeachment, seja pelas mobilizações nas ruas, seja pelas articulações
com deputados. O filme se vale de uma mal sucedida marcha até Brasília, aqui caracterizada
como exitosa, como curva narrativa essencial, que vai sendo preenchida por entrevistas dos
militantes mais conhecidos tudo isso depois de iniciar com três clipes: primeiro, o clipe da
crise (acompanhado por música hardcore); depois, uma análise com voz over dos governos
Lula e Dilma (cujos méritos são atribuídos ao Partido Social Democrata Brasileiro, restando ao
PT uma aproximação com ditadores); por fim, uma apresentação humana, bem-humorada, auto-
condescendente dos principais fundadores do MBL. Seguem-se então os nove capítulos: O
chamado, Contágio, A marcha, Alea jacta est, Acampamento, O troco, O cume, Operação
minerva e O parto. É emblemático o captulo “Acampamento” sobre uma ao de todo
irrelevante para o desenrolar do processo mas aqui elevada à máxima importância por meio de
conflitos com a imprensa tradicional (que, numa reportagem noturna, enquadra o congresso
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sem mostrar suas barracas) e com militantes de esquerda que partem para o confronto. Ainda
que seja o único favorável à destituição de Dilma em nosso mapeamento, o filme faz parte de
um fenômeno contemporâneo de fortalecimento do cinema de extrema-direta que tem como
antecessor os documentários produzidos pelo Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (IPES) a
favor da deposição de João Goulart.
Democracia em vertigem (Petra Costa, 2019) aborda a prisão de Lula e a eleição de
Bolsonaro, mas reserva ao impeachment de Dilma o cerne da obra. Ele é seu epicentro. A
narração em primeira pessoa, as contínuas referências à sua própria família, situam Democracia
em Vertigem dentro do escopo do giro autobiográfico do documentário latino-americano
(Piedras, 2016). Em grande parte realizado por diretoras mulheres, esses filmes vêm sendo
considerados a partir dos agenciamentos de protagonistas femininas que narram histórias
pessoais permeadas por fatos históricos ou vice-versa. Ainda que seja possível apontar
diferenças fundamentais, e até uma certa inversão em seus pressupostos, algo que se situa além
do escopo deste artigo, é interessante ressaltar que Petra Costa realiza uma obra que mescla sua
autobiografia com a história pública e política do país. Por meio de uma narrativa robusta (a
equipe de edição soma dezenas de pessoas), acesso a preciosos materiais de arquivo de Lula, o
filme constrói uma representação do impeachment como um eco das divisões de classe do
Brasil, divisão que ocorre também, por motivo ideológico, mesmo dentro das famílias mais
ricas do país (como a sua).
Em Alvorada (2020) Anna Muylaert e Politi acompanham a rotina da residência
oficial de Dilma Rousseff, desde seu afastamento até o julgamento final. É um filme de certo
modo complementar a O processo, correspondendo o mesmo tempo histórico e, ademais,
realizado sobretudo na observação. Há uma diferença fundamental entre esse filme e todos os
demais: ele não se ocupa de explicações. Chegando aos cinemas apenas em 2020, esse debate
está, de algum modo, esgotado ou, ao menos, sem debatedores. Acompanhando a rotina
desses últimos dias, pouco a pouco vai se firmando no espírito a consciência de um país que se
desfaz como a mesa transportada com esmero e dificuldade e da qual cai, sem surpresa, um
de seus pedaços. Os computadores demoram a ligar. A piscina um problema e um homem
sem camisa tenta fazer uma sucção. Os cozinheiros, os jardineiros, os trabalhadores e as
trabalhadoras seguem em seus afazeres. Sem nostalgia ou comoção, Dilma reflete sobre sua
vida política, deixa-se ouvir de forma franca e decidida. Ao final, urubus invadem uma sala da
residência e um segurança busca retirá-los. Finalizado sob Jair Bolsonaro, o filme parece
mostrar a alvorada de um tempo nefasto e, também, a profunda indiferença dos trabalhadores
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diante do destino da presidenta que, tão afastada do povo, busca durante aqueles meses imprimir
uma imagem distinta ao receber grupos populares do palácio.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Assistir todos esses filmes nos possibilita compreender distintas facetas do processo de
destituição sofrido por Dilma Rousseff.
As entrevistas analíticas de O muro (2017), Já vimos este filme (2017), GOLPE (2018)
contextualizam o processo para além dos fenômenos imediatamente visíveis. A quantidade de
asserções sobre a grande história não é maior do que em filmes como Brasil, o grande
salto para trás (2017), Excelentíssimos (2018) e Democracia em vertigem (2019) que somam
ao recurso das entrevistas, o acompanhamento de parte do cotidiano político do país e instâncias
narradoras que se manifestam por meio da narração e do material de arquivo para sintetizar um
grande conjunto de informações. Narração e material de arquivo que, no último filme, são
marcados pela subjetividade e autobiografia da diretora.
Ao contrário, O processo (2018) e Alvorada (2021) deixam ao público a possibilidade
de refletir apenas por meio da organização do material passível de ser percebido e captado pela
instância de registro. Vínculos com outros momentos históricos e com atores políticos ausentes
da obra não são apontados, o que não quer dizer que não seja possível, a quem assiste, fazê-lo
ainda mais pela inclusão de tempos mortos e planos silenciosos que ensejam a reflexão.
Deve-se destacar, entretanto, que não são análises em grande escala o que tais obras propõem:
antes, se restringem e se atêm a apenas um aspecto do processo. Essas duas obras, ademais, são
bastante distintas por observarem, durante o mesmo período, espaços em que as ações diferem
em termo de efetividade e capacidade de alteração dos eventos.
Filme-Manifesto (2016), Um domingo de 53 horas (2017), Não vai ter golpe! (2019) e
Tchau, querida! (2019) são filmes que, de modo inteiramente distintos, dão um espaço maior
aos militantes de ambos os lados. Possibilitam a compreensão do que levou tantas pessoas
às ruas e como essas pessoas enxergaram e participaram o processo que se desenrolava. O
primeiro é, ele inteiro, o ponto de vista de uma militante tanto pelas imagens ancoradas em
seu corpo, quanto pela seleção que ela mesma faz das imagens de arquivo que, aqui, funcionam
como principais asserções; o segundo abre seu espaço para, em muito a diversas entrevistas
com especialistas, alguns dos manifestantes de esquerda, de direita e para “o povo”
representado na figura de dois vendedores; Tchau, querida! (2019) busca elevar, pela imagem
dos manifestantes, as ideologias por trás do processo; enquanto Não vai ter golpe! mostra como
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parte do espectro favorável ao impeachment se mobilizou e busca ressignificar os valores
expressos em outras obras.
Se voltarmos ao centro de nosso artigo, poderemos afirmar que a elaboração da imagem
da destituição de Dilma Rousseff foi em cada um desses filmes um trabalho alcançar de forma
audiovisual e cinematográfica uma interpretação do evento. Desde o momento em que se
definiu o escopo da obra até o momento de sua edição final, passando pelo decisivo momento
da filmagem, esta interpretação foi sendo talhada na maior parte dos casos, é possível
acreditar, não em linha reta, mas descontínua à medida que a progressiva compreensão da
realidade ia, ela mesma, tomando forma e ganhando, em parte, transcrição em matéria fílmica.
Assistir esses filmes é, assim, tanto uma possibilidade de compreender aspectos distintos
do processo de destituição de Dilma, como também da realização documentária e dos efeitos
das escolhas de roteiro, personagens, filmagem e edição que ela inevitavelmente traz consigo.
O risco, claro, é achar que estes filmes dão conta da realidade; nem tomados em conjunto, e
menos ainda individualmente, eles poderiam fazê-lo. Mas não é isso, de todo modo, que se deve
esperar de um documentário nem uma janela para o mundo, nem uma enciclopédia. Do
contrário, estaríamos a um passo de aderir de forma imediata ao conteúdo fílmico, tomando a
coisa pela imagem. Muitas vezes isso é estimulado pela própria instância narradora, o que é
ainda mais danoso considerando-se que, apesar da longa tradição autorreflexiva do cinema
documentário, vivemos em um período em que a adesão às imagens audiovisuais ganha outros
contornos com a disseminação em massa de notícias falsas. Apresentar uma interpretação
fragmentada, dotar os filmes de espaços de contemplação ou jogar com a desconfiança como
um valor essencial da comunicação audiovisual são algumas das maneiras de evitar o estímulo
nesta direção, o que é alcançado em maior ou menor grau por filmes como Filme Manifesto
(2016), Alvorada (2021), Um domingo de 53 horas (2017), O muro (2017) e O processo (2018).
Por fim, gostaríamos de destacar duas operações particularmente questionáveis para a
representação do processo de destituição de Dilma Rousseff. Os dois momentos aqui destacados
não se equiparam em gravidade: enquanto no primeiro caso há uma deliberada manipulação de
fatos e discursos que, feita de modo transparente, busca corresponder à realidade, no segundo
parece haver sobretudo uma interpretação simplista da realidade na qual lugar para a
dicotomia apresentada.
O primeiro, ocorre em Não vai ter golpe! (2019) quando o filme se apropria de uma
intercepção ilegal de um telefonema entre Dilma e Lula. A sequência tem início com Lula
afirmando que “ guerra”, segue por manifestantes gritando por sua priso, por um reprter que
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relaciona a indignação da multidão ao conteúdo da gravação, afirmando ainda que
“lderes governistas também ficaram indignados, mas por terem tornado pública aquela
gravao” (Ruah e Santos, 2019). Deste modo, o filme oculta de sua narrativa a ilegalidade do
registro e de sua divulgação passando de imediato a palavra ao juiz Sérgio Moro para quem
“a democracia em uma sociedade livre exige que os governados saibam o que fazem os
governantes mesmo quando estes costumam agir nas sombras” (Ruah e Santos, 2019). Tudo
estaria aceitável, não fosse o fato de que quando a gravação foi realizada, não havia
autorização para escuta do telefone de Lula e, ainda mais grave, mesmo que esta estivesse
vigente, ao receber telefonema da presidenta Dilma a escuta deveria ser interrompida de
imediato por falta de autorização judicial para tal. Ocultar esta informação contribui para uma
representação não apenas inadequada do evento, mas desonesta e, nas circunstâncias de um
abalo institucional dos fundamentos da república e da democracia, verdadeiramente abjeta.
O segundo momento ocorre em Democracia em vertigem (2019). Vemos, em um plano,
o avião que conduz Lula à Polícia Federal e, no plano seguinte, fogos explodindo celebrando a
eleição de Bolsonaro. Esta elipse, por meio da qual o filme une, com um corte seco, opera de
forma sofisticada uma construção de sentido que remete aos experimentos do pioneiro da
montagem, Lev Kuleshov. É difícil discordar que o destino da eleição seria outro sem a prisão
do ex-presidente. Muito além de afirmá-lo, no entanto, essa elipse expressa de forma
dramaticamente potente que a eleição de Bolsonaro realizou-se ali. Deste modo, são ignorados
fatores significativos para esta eleição e para a avaliação da vertigem da democracia brasileira,
desde os disparos em massa de mensagens eleitorais com financiamento ilegal de empresários
até a ressentida fragmentação da centro-esquerda, sem falar do afastamento do Partido dos
Trabalhadores das bases populares de sua origem política, da comoção popular com a
repercussão da notícia de um atentado à vida de Bolsonaro. Tudo é obliterado na potência
expressiva daquela elipse. A este respeito, é preciso lembrar a antiga máxima godardiana de
que o travelling é uma questão moral, máxima que Maria Augusta Ramos, diretora de O
processo (2018), formulou com as seguintes palavras: “Cada corte um corte esttico e tico”
(Ramos, 2018).
Em alguns sentidos, representar é depor. Depor a realidade de seu meio, transfigurá-la
em imagem-som, duração, e realizar um depoimento coercitivo sobre essa realidade. Dizer que
o documentário é uma deposição é dizer pouco; na melhor das hipóteses, está a um passo do
que realmente importa. Uma deposição pode ser considerada justa ou não (em geral sendo
julgada destas duas formas simultaneamente por grupos antagônicos), ocorrer por uma
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violência intolerável ou com a mínima força necessária para que o objetivo seja alcançado. Mas,
além disso, o documentário é também o processo pelo qual algo se instaura no lugar do que foi
deposto e os processos pelos quais ele institui esse outro, processos dos quais fazem parte a
deposição, guardam parte essencial de seu valor.
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Revista Coletivo Cine-Fórum RECOCINE | v. 2 - n. 3 | set-dez | 2024 | ISSN: 2966-0513 | Goiânia, Goiás
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FILMOGRAFIA
ALVORADA. Direção: Anna Muylaert, Lô Politi. Brasil: Globo Filmes, 2021. Filme (74
min).
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Revista Coletivo Cine-Fórum RECOCINE | v. 2 - n. 3 | set-dez | 2024 | ISSN: 2966-0513 | Goiânia, Goiás
BRASIL, O GRANDE SALTO PARA TRÁS. Direção: Mathilde Bonnassieux, Frédérique
Zingaro. França: ARTE France, 2016. Filme (52 min).
DEMOCRACIA EM VERTIGEM. Direção: Petra Costa. Brasil: Netflix, 2019. Filme (121
min).
ESQUERDA EM TRANSE. Direção: Renato Tapajós. Brasil: Appian Way Productions,
2019. Filme (84 min).
EXCELENTÍSSIMO. Direção: Douglas Duarte. Brasil: Pagu Pictures, 2018. Filme (152
min).
FILME MANIFESTO - O GOLPE DE ESTADO. Direção: Paula Fabiana. Brasil: Canal
Brasil, 2016. Filme (72 min).
GOLPE. Direção: Guilherme Castro, Luiz Alberto Cassol. Brasil: Sofá Verde Filmes, 2018.
Filme (77 min).
JÁ VIMOS ESSE FILME. Direção: Boca Migotto. Brasil: TVE-RS, 2018. Filme (84 min).
MISÈRE AU BORINAGE. Direção: Henri Storck, Joris Ivens. Bélgica: CINECO, 1934.
Filme (36 min).
NANOOK OF THE NORTH. Direção: Robert Flaherty. EUA: Revillon Frères, 1922. Filme
(79 min).
NÃO VAI TER GOLPE! Direção: Fred Rauh, Alexandre Santos. Brasil: Cinegnose, 2019.
Filme (70 min).
O PROCESSO. Direção: Maria Augusta Ramos. Brasil: Vitrine Filmes, 2018. Filme (137
min).
O MURO. Direção: Lula Buarque de Holanda. Brasil: Canal Brasil, 2017. Filme (85 min).
O MÊS QUE NÃO TERMINOU. Direção: Francisco Bosco, Raul Mourão. Brasil:
GloboNews, 2019. Filme (82 min).
TCHAU, QUERIDA. Direção: Gustavo Aranda. Brasil: CineArte, 2019. Filme (90 min).
TERRA EM TRANSE. Direção: Glauber Rocha. Brasil: Mapa Filmes do Brasil, 1967. Filme
(106 min).
UM DOMINGO DE 53 HORAS. Direção: Cristiano Vieira. Brasil: TV Cultura, 2017. Filme
(72 min).