Ana Carolina Morais de Souza
https://orcid.org/0009-0009-9647-6073
Discente de graduação em Letras - Habilitação Português e Espanhol da Universidade Estadual de
Mato Grosso do Sul (UEMS/Dourados). Desenvolve projeto de Iniciação Científica - PIBIC -
UEMS/Dourados, vinculado ao curso de Letras, na área de Estudos Literários.
Undergraduate student of Letters - Portuguese and Spanish at the State University of Mato Grosso do Sul
(UEMS/Dourados). Engages in a Scientific Initiation project - PIBIC - UEMS/Dourados, linked to the Letters
course, in the field of Literary Studies.
Paulo Henrique Pressotto
https://orcid.org/0000-0001-5625-4526
Possui graduação em Letras - Português/ Francês/ Espanhol pela Universidade Estadual Paulista-
Júlio de Mesquita Filho - Unesp, e também Mestrado em Letras - Unesp. É Doutor em Letras, na
área de Estudos de Literatura e especialidade em Literatura Comparada, pela Universidade Federal
do Rio Grande do Sul - UFRGS. Professor Associado da Universidade Estadual de Mato Grosso do
Sul - UEMS/Dourados, atuando na graduação em Letras e Pós-graduação. Atualmente é
Coordenador do Mestrado Profissional em Letras - PROFLETRAS-UEMS/Dourados. É membro do
CEPEGRE - Centro de Estudos, Pesquisa e Extensão em Educação, Gênero, Raça e Etnia - UEMS;
também é membro do Grupo de Estudo e Pesquisa Interinstitucional: Crítica feminista e autoria
feminina: cultura, memória e identidade. É conselheiro do CEPE-UEMS (Conselho de Ensino,
Pesquisa e Extensão) e da Câmara de Pesquisa, Pós-graduação e Inovação. Coordenador de Área do
PIBID - Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência - na UEMS. Orienta projetos nas
áreas de Ensino, Pesquisa, Extensão e Internacionalização (PIBIDin). É membro do Comitê Docente
Estruturante do curso de Letras Port./Espanhol.
Holds a degree in Letters - Portuguese/French/Spanish from São Paulo State University - Júlio de Mesquita
Filho (Unesp), and a Master’s degree in Letters from the same institution. He holds a Ph.D. in Letters,
specializing in Comparative Literature, from the Federal University of Rio Grande do Sul (UFRGS). Currently,
he is an Associate Professor at the State University of Mato Grosso do Sul - UEMS/Dourados, working in the
undergraduate Letters program and the graduate program. He is also the Coordinator of the Professional
Master's in Letters - PROFLETRAS-UEMS/Dourados. A member of CEPEGRE - Center for Studies, Research,
and Extension in Education, Gender, Race, and Ethnicity - UEMS, he also participates in the Interinstitutional
Study and Research Group: Feminist Criticism and Female Authorship: Culture, Memory, and Identity.
Additionally, he serves as a board member of the CEPE-UEMS (Teaching, Research, and Extension Council)
and the Research, Graduate Studies, and Innovation Chamber. He coordinates the area for PIBID - Institutional
Program for Teaching Initiation Scholarships at UEMS and supervises projects in the areas of Teaching,
Research, Extension, and Internationalization (PIBIDin). He is a member of the Structuring Teaching
Committee of the Portuguese/Spanish Letters course.
Este artigo passou por avaliação por pares cega e software anti-plágio.
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SUJEITO E DISSIDÊNCIA EM A PALAVRA QUE RESTA, DE
STÊNIO GARDEL
RESUMO
A palavra que resta (2021), do cearense Stênio Gardel, narra a vida de Raimundo Gaudêncio que nascido
e crescido na roça não teve a oportunidade de estudar e decide aos seus 71 anos aprender a ler e a
escrever. A motivação de Raimundo é principalmente a carta deixada por seu grande amor da juventude,
Cícero, antes que se separassem de forma abrupta por conta da homofobia paterna. Com uma prosa
delicada, pungente, bela e poética, Gardel conduz o leitor pela vida de Raimundo que é permeada por
muitos preconceitos, homofobia internalizada e autoaceitação, além de outros personagens tão
emblemáticos e complexos quanto o próprio Raimundo Gaudêncio, sua escrita é completamente
envolvente e não à toa esteve entre os dez finalistas do 64º Prêmio Jabuti, e foi o ganhador do National
Book Awards 2023, em sua tradução para língua inglesa. Assim, o presente trabalho almeja analisar as
dissidências de gênero e sexualidade, bem como as violências que as acompanham, presentes no
romance de Stênio Gardel, à luz de conceitos teóricos como os dos autores: Butler (2019a, 2019b, 2022);
Preciado (2020, 2022); Bento (2017) e Halberstam (2020). Dessa forma, buscou-se realizar uma análise
interpretativa dessa obra da literatura de ficção contemporânea brasileira, e entendemos que, com esta
proposta, é possível debater questões relacionadas à temática de gênero, sexualidade e violência que
permeiam as vivências dos dissidentes às normas, também evidenciar uma obra que merece todo
destaque da crítica e incentivar para que esta seja ainda mais reconhecida pelo leitor brasileiro e
estrangeiro.
Palavras-chave: A palavra que resta. Sujeito. Violência. Gênero. Sexualidade.
SUBJECT AND DISSIDENCE IN THE WORDS THAT REMAIN BY STÊNIO
GARDEL
ABSTRACT
The Words that Remain (2021), by the cearense author Stênio Gardel, narrates the life of Raimundo
Gaudêncio, who, born and raised in the countryside, did not have the opportunity to study and decides
at the age of 71 to learn to read and write. Raimundo’s motivation is primarily the letter left by his great
love of youth, Cícero, before they were abruptly separated due to paternal homophobia. With delicate,
poignant, beautiful, and poetic prose, Gardel guides the reader through Raimundo’s life, which is
permeated by many prejudices, internalized homophobia, and self-acceptance, as well as other
characters as emblematic and complex as Raimundo Gaudêncio himself. Gardel’s writing is completely
engaging and was among the ten finalists for the 64th Jabuti Prize and the winner of the 2023 National
Book Awards for its English translation. Thus, the present work aims to analyze the gender and sexuality
dissidences, as well as the violence that accompanies them, present in Stênio Gardel’s novel, in light of
theoretical concepts from authors such as Butler (2019a, 2019b, 2022); Preciado (2020, 2022); Bento
(2017) and Halberstam (2020). In this way, an interpretative analysis of this work of contemporary
Brazilian fiction literature was carried out, and it is understood that, with this proposal, it is possible to
debate issues related to gender, sexuality, and violence that permeate the experiences of those who
deviate from norms. This work also aims to highlight a novel that deserves critical acclaim and to
encourage it to be even more recognized by Brazilian and foreign readers.
Keywords: The Words that Remain. Subject. Violence. Gender. Sexuality
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CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A palavra que resta (2021) é o primeiro romance do cearense Stênio Gardel, produzido
durante o Ateliê de Narrativas, em Fortaleza, ministrado pela também escritora Socorro Acioli.
O romance foi finalista do 64º Prêmio Jabuti (Tréz, 2022), além de já ter os direitos vendidos
para adaptação cinematográfica (Rifane, 2023), tamm ganhou o prêmio National Book
Award 2023, em sua tradução para o inglês (Sobota, 2023) e vem se destacando no cenário
literário desde sua publicação.
Com uma escrita poética e sensível, o romance narra a história de Raimundo Gaudêncio
que aos 71 anos decide aprender a ler e escrever para que possa fazer a leitura de uma carta
recebida em sua juventude, guardada desde então. Nascido e crescido no sertão e trabalhando
desde muito cedo na roça da família, não teve chance de estudar e a vontade e os sonhos de
aprender a ler ficaram apenas em seus pensamentos. Sua angústia com a carta guardada
perpassa toda a narrativa, mais ainda por ter como remetente o grande amor de sua mocidade:
Cícero, o amigo com quem dividiu muitos momentos e carícias.
Gardel conduz o leitor de forma intercalada entre os muitos momentos da vida de
Raimundo, são idas ao passado e voltas ao presente, em uma narrativa que se constrói como um
fluxo da mente, sem se prender a uma linearidade engessada. Diálogos e memórias muitas vezes
são passados nas páginas de modo a lembrar muito a oralidade e também de forma corrida, sem
travessões, sinalização ou quebras de linha, assim como um trecho corrido de Saramago. Sua
prosa é completamente envolvente e a história se desenrola de uma forma que largar o livro
antes de finalizá-lo demanda muita força de vontade.
A palavra que resta é uma história delicada, magnética e singela sobre amor,
descobertas, preconceito, homofobia e aceitação. Assim, buscando ampliar o debate acerca da
obra e divulgá-la ainda mais no cenário literário contemporâneo, o presente artigo tem como
objetivo explorar a dissidência de sexualidade e gênero existentes e os desdobramentos que
acarretam nas vidas das personagens do romance. Por meio de revisão bibliográfica dos
conceitos teóricos de autores como Preciado (2020, 2022), Butler (2019a, 2019b, 2022),
Halberstam (2020) e Bento (2017), busca-se realizar uma análise interpretativa dessa obra da
literatura de ficção contemporânea brasileira.
Em A palavra que resta, exploramos a vida da personagem principal, Raimundo, e a
descoberta de sua sexualidade dissidente, assim como as violências sofridas e a homofobia
externa e a que é internalizada. Os mais de setenta anos de Raimundo são de muitas dores, lutas
e de um longo processo de aceitação. No presente artigo, destacamos e analisamos a trajetória
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desse sujeito, bem como de outra personagem curiosa, a travesti Suzzanný, que se torna uma
pessoa constante na vida de Gaudêncio. Buscamos relacionar também as definições teóricas
sobre gênero e sexualidades às vivências/experiências desses sujeitos.
OS SUJEITOS EM A PALAVRA QUE RESTA
O romance A palavra que resta (2021), de Stênio Gardel, é centrado na vida de
Raimundo Gaudêncio, um homem de 71 anos que se propõe a ler e escrever, sendo este fato o
início de sua história. A partir daí temos diversas rememorações de momentos importantes de
sua vida, embora a narrativa não siga de forma completamente linear, um panorama muito
claro dos acontecimentos e tal qual um fluxo de lembranças intrincadas, em que um evento
puxa o outro, é possível acompanhar a vida de Raimundo e tudo que o levou até aquele
flashback inicial cuja vontade de aprender a ler supera a vergonha por fazer isso já mais velho.
Raimundo nasceu e cresceu no sertão, na roça da família, desde cedo o pai, de forma
muito dura e clara, demonstrou que estudar não seria uma opção para ele, mesmo que houvesse
a vontade: “A vontade, tinha sim, desde menino, mas o pai lhe dizia que a letra era para menino
que não precisava encher o próprio prato. Raimundo foi cedo para a lida. De noite, o braço
ritmado no golpe da foice pedia descanso” (Gardel, 2021, p. 11). Sua vida se resumia a trabalhar
na roça com o pai e a passar os poucos momentos de distração com o amigo Cícero.
Cícero é a parte mais dolorosa e presente nas memórias de Raimundo, pois desde o
primeiro momento, o rapaz o transtornara, tirando-o do eixo, pelo fato de vê-lo como um rapaz
belo, coisa que não deveria ser “normal” entre os homens:
Raimundo achou Cícero bonito, de uma boniteza parecida com a que via nas
moças. Coração inquieto, sangue enxerido no pé da barriga. Caule plantado.
Deitado na rede, imagens buliçosas na cabeça reviravam o corpo. Corpo de
homem, o dele e o de Cícero. Homem com mulher, homem com homem não
prestava, as pessoas falavam disso, homem tinha que achar era mulher bonita,
homem que achava homem bonito não era homem, mas era homem e achava
Cícero bonito! (Gardel, 2021, p. 13-14).
Dessa forma, o primeiro vislumbre dos tormentos futuros de Raimundo aparece; ou
seja, surgem seu óbvio e descarado desejo por Cícero e o pensamento de que isso é errado.
Além disso, as pessoas poderiam falar deles, julgá-los, ainda mais na região em que viviam. E
já nesse instante podemos pensar em algumas palavras de Preciado: “As categorias de homem
e de mulher não são naturais, mas ideais normativos culturalmente construídos, sujeitos à
mudança no tempo e nas culturas” (2022, p. 157), pois o que afirmam insistentemente para
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Raimundo como deveres e desejos de homem e de mulher são construções. No entanto, sem
entendimento para fugir desse meio, o jovem apenas dissimula seus sentimentos.
Sem se preocuparem tanto com isso inicialmente, os dois estreitam laços e vivem um
relacionamento que dura por cerca de dois anos, repleto de momentos felizes e de ternura entre
eles, até o momento em que são descobertos e separados à força por seus pais, que tomam a
decisão de, além da separação, corrigi-los com surras e outras punições:
Se encontravam quase todo dia. O risco era grande. Tudo na moita. Na moita
mesmo se escondiam dos outros e se mostravam um para o outro. Homem e
homem, e se entendiam muito bem, se gostavam. Gosto bom mas que deixava
um ranço arranhando as ideias.
Dois anos durou.
Que porra é essa?
O pai de Cícero pegou o filho de quatro, fechou os cinco dedos da mão direita
e o derrubou no chão com um soco (Gardel, 2021, p. 15).
Após muitas surras e brigas, Raimundo foge de casa, partindo no mundo com uma carta
de Cícero e muitas lembranças; sem saber ler, manteve esse texto guardado por mais de
cinquenta anos até tomar a decisão de aprender a ler para poder descobrir o que a carta lhe dizia.
São essas dores e memórias que acompanhamos ao longo das páginas do romance,
principalmente os sofrimentos de Raimundo por ser homossexual e o seu enfrentamento na
sociedade, e sua luta contra a homofobia internalizada.
O descobrimento e a luta de Raimundo para conquistar sua própria aceitação é um longo
e tortuoso caminho, percorrido em toda a narrativa. Antes de internalizar os preconceitos,
Gaudêncio mostra-se de peito aberto, pronto para aceitar a vida com a pessoa que ama,
mostrando muito de sua ingenuidade:
Está calado, Cícero.
Estava, mas desatou a falar.
Tu não acha que é errado isso? Passar o resto da vida assim? E quando tu
ficar mais velho e eu ficar mais velho, casado com filho e com isso escondido?
E quando tem gente perto, tem que ficar vigiando pra não olhar como quer
olhar, não falar como quer falar. Tu não pensa nisso não, hein, Gaudêncio?
Não pensa?
Será que a gente não pode viver junto, sem casar com mulher?
Cícero se levantou, começou a se vestir.
Ficou besta?
Tu vai pra onde, Cícero?
Vou pra casa, tu fica aí com essa conversa, melhor eu ir pra casa.
Raimundo ficou só (Gardel, 2021, p. 24-25).
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Mas, após a descoberta do romance entre os dois, as coisas pioram de forma
significativa, com a separação dos amantes e as agressões paternas que buscavam a correção,
Raimundo passa a se resignar e entender que não há lugar seguro para que viva o seu amor por
Cícero ou por qualquer outro homem que seja:
Que história é essa que o Nonato me contou, Raimundo? Pra mim e pra tua
mãe? A mãe?, eu tenho que falar com ela, mas dizer o quê, se nem a pergunta
do pai eu respondi ainda, não soube o que dizer, aqui dentro de casa, na frente
dele, parece que o que fazia com Cícero era coisa errada mesmo, isso me
encheu a cabeça de um jeito que não consigo ajuntar palavra com palavra
quando abro a boca, emudeci, que nem quando vi Cícero limpando o corte que
o murro do pai abriu nele, cortou foi nossa garganta também, se eu ou ele tinha
dúvida os pais sabiam era de certeza que a gente não podia ficar junto, como
é que pode? eles que sabem? nunca fui de peitar o pai, pai a gente obedece,
porque pai sabe das coisas, é igual a ele que a gente quer ser quando ficar mais
velho,
Seu Damião puxou Raimundo pelo braço em direção ao quarto, desfivelando
o cinturão (Gardel, 2021, p. 32).
Judith Butler (2022) fala um pouco sobre essa violência que busca manter o status quo,
que a qualquer custo quer apagar os dissidentes de sexualidade e de gênero para que se
mantenha a suposta ordem:
A pessoa que ameaça com violência procede a partir da crença rígida e
angustiante de que um sentido de mundo e um sentido de eu [self] estará
radicalmente comprometido se tal ser não categorizável puder viver dentro do
mundo social. A negação desse corpo, através da violência, é um esforço vão
e violento para restaurar a ordem, para renovar o mundo social, com base em
um gênero inteligível e recusar o desafio de repensar esse mundo como algo
diferente de um mundo natural ou necessário (Butler, 2022, p. 64).
Vale destacar também que, como afirma a autora, essa “norma” que muitos defendem a
qualquer custo existe por causa da repetição dos rituais sociais, nenhuma delas é algo
imutável, e depende totalmente das práticas e vivências sociais, sem essa reprodução não
existiria a “norma”:
De fato, a norma persiste como norma na medida em que é atualizada na
prática social, idealizada repetidas vezes e reinstituída nos rituais sociais
cotidianos da vida corpórea. A norma não tem estatuto ontológico a suas
instanciações; ela própria não é (re)produzida através de sua corporificação
pelos atos que se esforçam pro aproximar-se dela, pelas idealizações em tais
atos (Butler, 2022, p. 87).
Assim como também afirma Paul B. Preciado (2022), a sexualidade nos é imposta logo
ao nascer, ou seja, ao identificarem o aparelho biológico com o qual nascemos, independente
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de qualquer outra coisa é isso que para a sociedade ocidental irá determinar o sexo, o gênero e
o desejo que devemos ter ao longo de nossas vidas, afinal até mesmo “O desejo não é uma
verdade dada, mas um campo social fabricado que pode ser modificado com o uso de
ferramentas da metáfora e da imaginação, da poesia e da experimentação somática” (Preciado,
2022, p. 27). E ainda, como coloca o autor, a imposição pode ser dada até mesmo antes do
nascimento:
Antes do nascimento, graças à ultrassonografia uma tecnologia célebre por
ser descritiva, mas que não é senão prescritiva , ou na própria ocasião do
nascimento, foi-nos atribuído um sexo feminino ou masculino. O ideal
científico consiste em evitar qualquer ambiguidade fazendo coincidir, se
possível, nascimento (talvez, no futuro, inclusive fecundação) e atribuição de
sexo. Todos nós passamos por essa primeira mesa de operações performativa:
“é menina!” ou “é menino!”. O nome próprio e seu caráter de moeda de troca
tornarão efetiva a reiteração constante dessa interpelação performativa. Mas o
processo não para por aí. Seus efeitos delimitam os órgãos e suas funções, sua
utilização “normal” ou “perversa”. Se a interpelação é performativa, seus
efeitos são prostéticos: ela fabrica corpos (Preciado, 2022, p. 132).
Butler (2019a, 2019b, 2022) e muitos outros teóricos queer questionarão essa
imposição, pois as dissidências à norma existem aos montes, já deveriam ser aceitas. Preciado,
por exemplo, em certo momento, compara a sexualidade à língua:
As sexualidades são como as línguas: sistemas complexos de comunicação e
reprodução da vida, construtos históricos com genealogias e inscrições
bioculturais em comum. E, tal como as línguas, podem ser aprendidas. É
possível falar várias línguas. Como ocorre muitas vezes no monolinguismo,
é-nos imposta na infância uma sexualidade, que assume o caráter de um desejo
naturalizado. Somos formados no monolinguismo sexual (Preciado, 2022, p.
17).
O que a autora nos mostra é que a dita “norma” é uma imposição e que pode se
modificar. Inclusive quando extrapolamos e nos voltamos para o mundo animal temos algumas
divergências da suposta norma, a análise é importante, pois um dos grandes motes dos discursos
homofóbicos se pauta em uma biologia em que os dissidentes de sexualidade e gênero não
existem, como Halberstam (2020) bem traz em sua obra A arte queer do fracasso, ao citar o
estudo de Roughgarden que deu origem ao livro Evolution’s Rainbow. Nele, a bióloga explica
que muitos estudiosos observam a natureza através das lentes do preconceito e da
socionormatividade, pois, apesar de existirem na natureza peixes transexuais, hienas
hermafroditas, aves não monógamas e lagartos homossexuais, muitas vezes seus papeis são
incompreendidos e tenta-se encaixá-los nos modelos heteronormativos humanos. Haberstam
também destaca outra pesquisadora, Mooallem, que observou como muitos pesquisadores
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reiteradamente fornecem desculpas para comportamentos sexuais dissidentes dos animais que
observam.
Quanto a esse discurso de determinação da natureza para os gêneros e sexualidade,
Berenice Bento (2017) afirma o quanto a sociedade busca materializar nos corpos as verdades
para cada gênero e será através das reiterações nas instituições sociais como a família, a igreja,
a escola, a ciência etc., que se dará esse processo. Assim, segundo Bento (2017), existe a
necessidade permanente de que o sistema siga afirmando e reafirmando ininterruptamente as
diferenças entre homens e mulheres, e que estas sãos diferenças vindas da natureza. A autora
ainda demonstra que essa necessidade demonstra o quanto é falho o processo, pois se é preciso
reafirmar tantas vezes é sinal de que a concretização de tais ideias não está ocorrendo como o
planejado.
Bento (2017) faz questão de demonstrar que quanto mais o sistema busca reiterar essas
determinações da natureza sobre os gêneros, mais ele mostra que o gênero não é uma identidade
estável, pois se o fosse não seria preciso dispender tanto tempo nessas afirmações, ou seja,
mostra-se o quanto essa identidade é frágil e foi debilmente constituída no tempo, sendo
obviamente construída por meio da repetição infinita de atos. Assim, Bento (2017) coloca que
o que se supõe como algo natural dos corpos é basicamente algo que se produz mediante a
gestos corporais que foram meticulosamente pensados e naturalizados, não existe tal “essência
interna” que muitos acreditam e já foi rechaçada também por Butler.
Citamos a reiteração do discurso homofóbico do que é natural ou não, podendo ir um
pouco mais além e tocar na questão religiosa que fortalece o preconceito, sendo responsável
pela exclusão dos dissidentes. Um exemplo é a mãe de Raimundo quando conversa brevemente
com o filho a fim de convencê-lo a partir de sua casa; ela lança sobre ele a culpa, ou melhor,
afirma que todas as mazelas da família são frutos da “imundice” dele, ocasionando castigo
divino à família: a mãe de Raimundo, perdera os filhos gêmeos recém-nascidos, essa seria a
punição para o comportamento pecaminoso do filho homossexual que morava na casa. Sua mãe
conta-lhe a história da cruz de madeira que existia no açude perto da casa, ali havia morrido o
irmão de seu pai:
Não falou nem vai falar. Dalberto era metade da vida dele, metade que ele
perdeu pro rio e pro pulso firme do pai. Ele era como tu, gostava de macho.
Teu pai encobriu as imoralidades dele por um tempo, brigou com ele no
começo, mas acabou aceitando. Dalberto fez até Damião apanhar do pai junto
com ele. E um dia, perto do meu casamento com teu pai, teu tio tirou a
paciência de teu avô, teu avô levou ele pro rio. Dalberto parece que tinha medo
d’água, frouxo. Teu avô precisou entrar no rio também e só ele voltou.
Como pode isso, mãe? O vô matou um filho?
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Teu avô fez o que fez por causa de Dalberto.
as imoralidades de Dalberto, pulso firme do vô, o pai apanhou junto do irmão,
Dalberto gostava de macho, Dalberto frouxo,
E por que esconder a morte dele?
E mostrar pra quê? Dalberto trouxe desgraça [...] Quando vocês
começaram com isso? Foi antes que embuchei dos gêmeos?
Foi, faz bem dois anos.
E tu não pensa que foram tuas mãos sujas que tiraram a vida do Pedro
quando segurou ele? E do Manuel, que a casa já estava toda empestada desse
pecada, dessa imundice tua com Cícero? Isso que tu fez não é coisa de homem
nem coisa de Deus!
A mãe começou a chorar.
Pois eu acho que tu deveria ir embora, pra longe, porque depois do que tu
fez não pode mais ficar aqui não (Gardel, 2021, p. 76-77).
Raimundo sem saber como reagir e pensar direito, foge de casa, levando poucas roupas
e a carta que Cícero lhe enviara através de sua irmã mais nova. Trabalhando como
chapa/auxiliar de caminhoneiro, passa a rodar o Brasil carregando e descarregando caminhões,
sem ter moradia fixa, amigos ou família. Antes de partir, Raimundo para próximo à cruz de
madeira e reflete sobre coragem, sobre seu tio que morreu afogado nas mãos da homofobia do
próprio pai:
Se o senhor meu tio fosse vivo, talvez meu pai agisse diferente comigo,
percebesse que homem gostar de homem não é pra ser coisa de morte, é pra
ser coisa de vida, cheia de vida, era cheio de vida que eu me sentia com Cícero,
e o senhor, meu tio, gostou de alguém assim? teve tempo? o senhor devia ser
pouco mais velho do que sou hoje, se foi perto do casamento do pai e da mãe
que o senhor morreu, o senhor teve muita coragem, de falar, de se mostrar, eu
nunca tive, nem vou ter, mas de que adianta? de todo jeito parece que a
resposta é uma só, se mostrando e se escondendo é morte e é desavença e é
sofrimento, é só coisa ruim que acompanha gente como nós, ainda mais agora
que vou pra longe daqui, da minha família, de Cícero, o que tu quer, Cícero?
o que tu me diz nessa carta? (Gardel, 2021, p. 134).
Após os traumas da juventude, Raimundo se retrai completamente e internaliza boa
parte da homofobia que lhe foi relegada, passando assim a experienciar sua sexualidade e seus
desejos de forma dolorosa e com muita vergonha e nojo. Mesmo longe dos pais e vivendo de
forma solitária, Raimundo se esconde nas sombras e passa a frequentar os lugares mais fétidos
e obscuros em busca de saciar seu desejo, sempre se arrependendo minutos depois e se
martirizando por ir, por não ir, por estar lá, por precisar gozar dessa forma escondida:
O quarto fedia a mijo e merda, suor e cigarro. A catinga incomodava, mas não
o suficiente para fazer Raimundo ir embora. Ele estava atrás de cheiro de
homem, das partes, de perto, como não podia estar fora. dentro, o
ambiente não estranhava as entranhas. Cinema quente e imundo. A maldita
palavra impregnava as roupas e o corpo. quando ele deixava o lugar ela
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entorpecia a mente. Porque, antes do gozo, a imundice vergava sob as
baforadas quentes do desejo. O desejo dele e do homem vergado, encaixado
no seu corpo. Não luz no quarto, o tremido de uma televisão em outro
cômodo da velha casa. Não se veem os rostos, não interessam os rostos. Se
enxergam pelo tato esfomeado, se comem com as mãos, se comem com as
bocas, e Raimundo comia o desconhecido, mesmo com outros homens no
quarto se masturbando e ouvindo o sopapo da coxa deve na bunda do cara. Os
gemidos e os cheiros em volta, Raimundo tentava terminar rápido, ordenhar
logo aquele desejo de uma vez, sair dali (Gardel, 2021, p. 65).
O asco que sente do ambiente, das pessoas como ele, de si mesmo é nítido em muitas
passagens do livro nas rememorações dos momentos em que viveu na estrada, longe de vínculos
afetivos e remoendo o preconceito com que foi expulso pela mãe, as surras “corretivas” do pai,
o amado Cícero que não fora até ele e mandara apenas uma carta em seu lugar sendo que ele
nem sabia ler e o outro tinha plena consciência do fato. Raimundo vive numa espiral
depreciativa, buscando solapar o desejo, vivenciar a norma exigida e é nesse misto de raiva,
emoções reprimidas e nojo de si que ele passa boa parte de seus anos:
Na calçada mal iluminada, Raimundo era o Raimundo dos becos. Ejaculada a
vontade, se enchia de nojo e raiva. Pelo menos até a próxima noite num lugar
como aquele.
E esse fedor que fica na pele da gente, debaixo da venta, direto, homem de
mais de quarenta anos, fazendo isso, não era porque estava vindo pra ficar
com macho, ou era, ou era o jeito que estava fazendo, nas sombras, será se
vou viver assim o resto da vida? fico puto só de pensar, Cícero que sumiu, se
fosse com ele tinha tido coragem, se bem mesmo com Cícero pensei em viver
escondido, Ninguém tinha que saber que viviam juntos, mas ia estar com ele,
era diferente, era de dia, olhava nos olhos castanhos, o gozo era doce, não era
amargoso como o de agora, que fique vindo aqui quem quer, mas eu não quero
isso pra mim não, quero mais não, está decidido, decido isso toda vez, não dá
quinze dias venho aqui de novo, pegar outro que não vejo nem a cara e saio
resmungando as mesmas coisas de agora, amargado, prometendo não vir mais,
parece que gosta de ficar desse jeito, Raimundo, cabra besta, (Gardel, 2021,
p. 66).
E, também, é neste momento de autoflagelo mental e autocomiseração que Raimundo
conhece a personagem que muda completamente sua vida: Suzzanný, uma travesti que o
interpela, na claridade, na saída do “cine” local obscuro onde Raimundo vai para obter sexo
com outros homens , pois o tira do anonimato que era central para suas incursões para aliviar
os desejos reprimidos. O breve encontro faz com que seus pensamentos punitivos entrem
numa espiral ainda mais íngreme:
[...] zunindo dentro da cabeça o que ele falou para alguém como ele, alguém
que estava no meio do mundo, do mundo que aceitava as pontas, homem que
gostava de mulher e mulher que gostava de homem, o meio era caroço infértil.
Fruto podre, que serve pra jogar nos chiqueiros da vida, nas esquinas da
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madrugada, nas casas velhas transformadas em cine pornô e nos quartos
fedidos, cheios de pecadores, cheios de pragas cheias de pus, pelo corpo, pela
alma, a gente tentava espremer as feridas ali, um espremendo o outro, sujos
como dizem, a gente era igual, e era diferente, que travesti o cuida de
vergonha (Gardel, 2021, p. 67).
O sofrimento de Raimundo por ser parecido com a travesti que viu no beco, por seus
desejos dos quais não consegue fugir, refletem muito do preconceito que vivenciou e da forma
como a sociedade se comporta. Berenice Bento (2017) fala sobre essa naturalização da norma
da tríade gênero, sexo e desejo, que oprime os dissidentes e respalda os opressores:
A história do corpo não pode ser separada ou deslocada dos dispositivos de
construção de um bio-poder. O corpo é um texto socialmente construído, um
arquivo vivo da história do processo de produção-reprodução sexual. Neste
processo, certos códigos naturalizam-se, outros, são ofuscados ou/e
sistematicamente eliminados, posto às margens do humanamente aceitável. A
heterossexualidade, longe de surgir espontaneamente de cada corpo recém-
nascido, inscreve-se reiteradamente através de operações constantes de
repetição e de recitação dos códigos socialmente investidos como naturais. O
corpo-sexuado e a suposta ideia da complementariedade natural, que ganha
inteligibilidade através da heterossexualidade, é uma materialidade saturada
de significado, não sendo uma matéria fixa, mas uma contínua e incessante
materialização de possibilidades, intencionalmente organizada, condicionada
e circunscrita pelas convenções históricas (Bento, 2017, p. 84).
Após esse primeiro encontro momentâneo, Raimundo volta a encontrar Suzzanný,
porém agora ele está acompanhando pelos amigos caminhoneiros. Ao ser reconhecido pela
travesti, Raimundo se enfurece, desconversa com os amigos, pois sua sexualidade é mantida a
sete chaves sempre, depois de alguns momentos parte cego de ódio ao encalce da moça:
Raimundo avançou. Suzzanný botou tanta força para acertá-lo com um dos
tamancos, que o calçado se soltou da mão antes do tempo, mal arranhou o
braço dele. Ela jogou o outro enquanto se afastava andando de costas. Errou
de novo. Raimundo a alcançou e deu um murro que cortou o lábio dela
(Gardel, 2021, p. 103).
Com medo de que sua máscara de “normalidade”/heterossexualidade caia perante a
sociedade, Raimundo está disposto a agredir uma pessoa, as mesmas agressões que sofreu
quando jovem nas mãos do pai que buscava consertá-lo/endireitá-lo; o ódio e a homofobia estão
de tal forma internalizadas nele que não percebe o quanto está reproduzindo as mazelas que ele
mesmo sofrera, as violências que fizeram seu tio ter a vida ceifada. Segue trecho dessa tensão
violenta entre Suzzanný e Raimundo:
Raimundo acertou outro murro.
Bem nessa tua cara rebocada.
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Ela cambaleou, se apoiou com uma mão no muro, a outra na parede do cine.
Abriu o peito para ele, levou um soco bem na boca do estômago, um passo
para trás, dois, três, escorregou, caiu sentada, a boca aberta chupando o ar,
chega zunia [...]
Suzzanný se arrastou um pouco, ficou bem no canto do muro, o braço
estendido, mostrando o dedo. O ar voltou.
No teu rabo.
Raimundo largou-lhe um chute na barriga, a pancada ecoou num grito, que
morreu de uma vez sem ar.
tenho que sair daqui, alguém vai aparecer, a cada dela, a cara dela não está
boa, o coturno, logo na barriga,
Para que tu foi falar de mim? Hein? Responde!
ela está ficando branca, a cabeça pendurada desse jeito, o peito dela, subindo
e descendo apressado, feito passarinho, parece que desmaiou, era o que
faltava, (Gardel, 2021, p. 104).
É nesse momento que dois homens saem do cine e Raimundo mente que já encontrara
a travesti assim. Sendo obrigado a levá-la ao hospital, fica responsável por ela e é esse o ato
decisivo que muda sua vida. Ao assinar o documento de entrada no hospital, firmando sua
responsabilidade com relação à moça, Raimundo decide ficar, já que ela ao acordar diz que não
o denunciará, mas que também não tem mais ninguém para vir ficar com ela; embora o medo
inicial de Gaudêncio seja a denúncia, logo ele é dissuadido e percebe o erro que cometeu:
Se preocupe que vou na polícia não. Pra ser igual das outras vezes? Ficar
ouvindo conversa de canto de sala, que estou me fazendo de vítima, querendo
prejudicar algum pai de família? Eles não fazem nada mesmo. Três vezes!
Três vezes! Um mesmo animal que eu tinha feito boletim de ocorrência e tudo
me bateu três vezes. Monte de amiga minha que foi pra noite e amanheceu na
sarjeta com a boca cheia de formiga, e eles mal dão um papel pra elas não
serem enterradas como indigente. Tem justiça pra nós ainda não, a justiça
que eu mesma faço, me levantando da cama todo dia (Gardel, 2021, p. 122).
O discurso de Suzzanný ressalta como a existência de pessoas como ela, dissidentes de
gênero, são muito mais invisibilizadas e rechaçadas na sociedade, enquanto Raimundo ainda
consegue se ocultar e simular para que ocorra uma passibilidade, com Suzzanný isso não é
possível, sofrendo em absolutamente qualquer lugar em que vá. Pois, como afirma Butler
(2019a), a sociedade, por meio da matriz cultural, se esforçará para que essas pessoas sejam
relegadas à margem, para que “não possam existir”:
A heterossexualização do desejo requer e institui a produção de oposições
discriminadas e assimétricas entre “feminino” e “masculino”, em que estes
são compreendidos como atributos expressivos de “macho” e de “fêmea”. A
matriz cultural por meio da qual a identidade de gênero se torna inteligível
exige que certos tipos de “identidade” não possam “existir” isto é, aqueles
em que o gênero não decorre do sexo e aqueles em que as práticas do desejo
não “decorrem” nem do “sexo” nem do “gênero” (Butler, 2019a, p. 44).
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Quanto a essa visão social que exclui corpos como o de Suzzanný ou até mesmo o de
Raimundo caso este expressasse sua homossexualidade, Berenice Bento (2017) destaca que não
existem corpos livres que sejam anteriores aos discursos:
Não corpos livres, anteriores aos investimentos discursivos. A
materialidade do corpo deve ser analisada como efeito de um poder e o sexo
não é aquilo que alguém tem ou uma descrição estática. O sexo é uma das
normas pelas quais o “alguém” simplesmente se torna viável, que qualifica
um corpo para a vida no interior do domínio da inteligibilidade. uma
amarração, uma costura, ditada pelas normas, no sentido de que o corpo reflete
o sexo, e o gênero, só pode ser entendido, só adquire vida, quando referido a
essa relação. As performatividades de gênero que se articulam fora dessa
amarração são postas às margens, pois são analisadas como identidades
“transtornadas” pelo saber médico (Bento, 2017, p. 85).
Raimundo reflete então sobre o seu acesso de raiva e o que o motivou a descontar o ódio
em Suzzanný de forma tão truculenta e percebe que o medo de ser descoberto é o que levou a
agredi-la brutalmente, o medo de que o vissem como homossexual, como alguém que frequenta
os mesmos espaços que uma travesti o horrorizou, pois desde cedo sofreu com as reprimendas
do pai, assim, o medo despertou nele a mesma ira que havia despertado em seu pai, e a violência
foi a resposta do sentir-se acuado e amedrontado:
eu fiquei morto de medo, Francisco, que tivesse feito uma besteira maior, sim,
porque besteira grande eu fiz, bater em você daquele jeito? tanto medo, essa
história de medo, não era medo que levantava o braço do pai? ele enfiou esse
medo em mim, foi escorrendo do braço dele pelo cinturão e entrou nas minhas
costas, ele é minha espinha, nele que me sustento, agora estou usando ele pra
machucar os outros? fiquei com medo de tu falar de mim, onde me conhecia,
pras outras pessoas, ia desgraçar com minha vida, cair na boca do povo, depois
desses anos tudo conseguindo me esconder? ela não que isso ia me fazer
mal? pra que tinha que inventar? fiquei acuado, ora mais, me protegi, me
protegi, foi, mas não precisava bater daquele jeito, e se ela não tivesse
apagado, era capaz de eu ter batido mais, mas quando vi ela lá, estirada, sem
vida, o medo me parou, quantas caras tem o medo? ela não vê isso? e daí que
ela não tem medo, sai desse jeito, com corpo e roupa de mulher, todo mundo
achando que tem é um homem debaixo, ela tem que achar que todo mundo é
igual? pois não é não, ela não vê isso, ela que é diferente não vê que não sou
parecido com ela? ou talvez ela veja que sou? (Gardel, 2021, p. 109-110,
grifos nossos).
O medo de ser descoberto enquanto homossexual, o medo de ser rechaçado por seus
pares, o medo da sociedade, o mesmo medo que levou seu pai, que havia perdido o irmão
que amava para a intolerância, a lhe bater, o mesmo medo de todos aqueles homens que se
escondiam no cine para obter prazer, mas não saiam nas ruas à luz do dia com seus afetos. A
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homofobia internalizada e o medo aterrador geraram em Raimundo uma raiva sufocante que
desembocou em agressão física de uma pessoa que poderia ameaçar seu status em uma
sociedade que não aceita dissidentes, agora além do medo e do ódio ele teria que conviver com
o remorso por seu ato covarde.
Este é o ponto de virada na vida de Raimundo, pois ele decide ficar na cidade para ajudar
a moça a se recuperar até que ela possa voltar a trabalhar. Desse modo, fica na pensão onde
Suzzanný morava e junto com a senhora que oferecia moradia, começa a criar laços e modificar
sua vida que não criava raízes. Inicialmente, faz alguns bicos nos mercados próximos, depois
passa a consertar máquinas de costura e a costurar com dona Solange, a dona da casa onde
moram, e assim sua amizade com a idosa e com Suzzanný vai aumentando e os laços se
estreitando. Inclusive sua autoaceitação é auxiliada pela amiga, mas não sem novos percalços:
Ela me chamou de bicha no meio da rua, desaforada, sentou na calçada com
as bolsas do lado, quando entrei na farmácia entendi por que ela mandou eu
entrar no lugar dela, Desculpe, senhor, mas vou pedir para o senhor se retirar
do nosso estabelecimento, É o quê? eu preciso desse remédio aqui, a desgraça
do balconista nem pra pegar a receita, olhou pra minha cara e olhou pra
fora, pra Suzzanný, O senhor pode se retirar, por gentileza?, na maior cara-
lisa, Posso não, senhor, que eu estou precisando do remédio e vocês vão me
vender, quero de graça não, aqui o aqué, ou, o dinheiro, Senhor, esse remédio
está em falta, nem leu a receita o condenado, outro balconista se aproximou
dele e ficou falando a mesma coisa, pra eu ir embora, e eu sem entender,
Rapaz, pois eu saio quando tu ler a receita, a resposta de veio com o
balconista mais parrudo me apertando no braço, me arrastando pra porta, Me
solte, tu, que não sou tua quenga, puxei meu braço com tanta força que o
cotovelo bateu na quina do balcão e cortou, deu tempo nem de sentir essa dor,
porque doeu mesmo foi a mão fechada dele bem no meu olho esquerdo, fiquei
zonzo, ele aproveitou e me empurrou pelos peitos, depois pelas costas até eu
botar os dois pés na calçada, caí sentado, o outro balconista veio ficar na porta
também, tinha dois clientes dentro, ninguém disse nada (Gardel, 2021, p.
126-127).
Os balconistas da farmácia se sentem no pleno direito de hostilizar Raimundo
simplesmente por ele estar com uma travesti ao seu lado, por suporem sua dissidência de gênero
e/ou sexualidade também, os clientes mesmo vendo a cena truculenta não falam nada e nem
tentam intervir, pois entendem que este é um comportamento normal para com pessoas como
Raimundo e Suzzanný. Para eles, é óbvio que esses dois deveriam ser “mais discretos”, estar
de acordo com a norma. Sobre essa conformidade, Butler (2019b) afirma:
Como estratégia de sobrevivência, os gêneros são performances com
consequências claramente punitivas. Gêneros discretos são parte das
exigências que garantem a “humanização” de indivíduos na cultura
contemporânea; e aqueles que falham em fazer corretamente seus gêneros são
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regularmente punidos. Porque não existe uma “essência” que o gênero
expressa ou externaliza, nem um ideal claro a ser alcançado; porque gênero
não é um fato, as várias formas de atuação de gênero criam a própria ideia de
gênero, e sem esses atos não existiria gênero nenhum. O gênero é uma
construção que regularmente esconde sua gênese. O acordo tácito coletivo de
performar, produzir e sustentar gêneros discretos e polares como ficções
culturais é disfarçado pela credibilidade da própria produção. Os autores dos
gêneros entram em um transe de suas próprias ficções, e por meio dele os
processos de construção impulsionam a crença da necessidade e natureza. As
possibilidades históricas materializadas por diferentes estilos corporais não
são nada mais que ficções culturais, reguladas por punições, alternadamente
incorporadas e disfarçadas por coerção (Butler, 2019b, p. 217).
Pela primeira vez Raimundo é hostilizado por estar com Suzzanný, por ser interpretado
como um também dissidente de sexualidade, e isso desperta nele novos pensamentos de fuga e
medo:
fiquei com o corte no braço e o olho roxo e a situação todinha na cabeça, no
fundo acho que eu sabia que podia acontecer, mas viver mesmo, e do lado de
do balcão, era outra coisa, e não chega nem perto do que Suzzanný deve ter
sentido, fora a costela, eles podiam fazer aquilo? devia poder, a farmácia era
deles, mas eu não ia pagar como todo mundo? pronto, Raimundo, tua fama já
está feita por aqui, é melhor pegar a estrada mesmo, voltar a andar em vez de
ficar num canto só, mas estou satisfeito de parar, parar de rolar feito seixo
carreado pelo rio, era bom ter um lugar pra chamar de casa, e gosto de costurar
com dona Solange, mesmo com a impaciência dela, gosto de morar com as
duas, mas ficar aqui está começando a cobrar um preço, elas pagam um preço,
claro que pagam, mas vivem em paz com elas (Gardel, 2021, p. 127).
Com a vontade de pertencer a algum lugar, de poder ter raízes, Raimundo decide
também “pagar o preço” e permanecer com Suzzanný e dona Solange, ficando, posteriormente,
só com a amiga quando a dona da pensão decide vender a casa e se mudar para o interior para
ficar perto da família. Assim, com o exemplo de Suzzanný, Raimundo vai pouco a pouco
deixando-se contagiar por sua coragem e passando a ter menos medo de se mostrar ao mundo,
menos medo de vivenciar sua sexualidade de forma plena e sem amarras, destruindo o muro
que havia construído para se proteger:
Quando a gente sai na rua é desse jeito, fica segurando minha mão, ainda hoje
tem gente que estranha, homem velho de mão dada com travesti velha, uns
cochichando de um lado, uns olhando atravessado de outro, deixa estranhar,
um dia eles aprendem, eu aprendi, eles aprendem, mas tem que querer, querer
sair da ignorância, é quase como eu querendo aprender a ler e escrever, tomei
a decisão de ver o mundo de outro jeito, me sentir mais dentro dele, porque a
ignorância faz é isso, exclui, isola, e não era isolado que eu vivia? arrodeado
de homem, de caminhoneiro, de chapa, mas sempre com um muro na minha
frente, e quem levantava esse muro era eu, todo dia um pouquinho, quando
me enroscava com mulher na frente deles pra fazer pose, era um tijolo,
quando insultava ou ria com eles se o assunto era homem que gostava de
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homem, mais tijolo, mas o muro crescia mesmo era quando eu ia no cinema
pornô, o muro crescia e alargava, me enclausurou dentro, ficou difícil
enxergar além do muro, eu tinha raiva de viver com ele, mas o desgraçado me
ajudava, me protegia (Gardel, 2021, p. 97-98).
Vencendo seus medos e compreendendo que não é errado vivenciar sua sexualidade da
forma como ela é, Raimundo passa a viver com Suzzanný na cidade. Passou a costurar para
fora e levar a vida tranquilamente, criando coragem até mesmo para finalmente aprender a ler
e escrever e, dessa maneira, conseguir ler a carta de Cícero que, mesmo após tantos anos, não
havia aberto. Ele inclusive a carregava para todo canto, até mesmo na viagem que fizera de
volta à sua cidade natal para reencontrar a irmã e expulsar os antigos fantasmas:
ela me ajudou a perder essa vergonha, mas agora tenho outra, de tentar estudar,
mas eu queria, quero muito, mas acho que não deve ser a vergonha, acho
que eu queria mesmo era que fosse tu que me ensinasse, que foi tu que
plantou essa esperança em mim, queria que ela brotasse e crescesse de tu,
comigo do teu lado, e tudo, tudo que eu aprendesse fosse contigo do meu lado,
era assim que tinha que ser, mas tanto da vida passou e não foi assim que
aconteceu, nem vai ser mais, no fundo acho que eu estava com essa vontade
escondida, daquelas que a gente finge que não tem mas ela está sim, eu acho
que estava com vontade de acabar encontrando você nessa viagem e você ia
poder me dizer, eu poderia ouvir de tu mesmo o que tu colocou no papel
(Gardel, 2021, p. 136).
Embora a carta seja um dos elementos centrais da trama de A palavra que resta, não
sabemos sobre seu conteúdo em nenhum momento. Raimundo inicia sua narrativa informando
que está aprendendo a ler para finalmente saber o que continha naquele envelope, seu derradeiro
vislumbre. O romance não mostra o teor das palavras contidas nessa epístola, mas diz muito
sobre a poética da história.
Raimundo deixou de se esconder, passou a aceitar sua sexualidade e a sua maior
amizade é a travesti Suzzanný que se tornara sua única família, com quem divide a casa, as
dores e as alegrias do envelhecer. Seus últimos instantes no romance remetem à escrita do
próprio romance que lemos, incentivado por sua amiga que lhe dera o caderno onde a narrativa
começa a tomar corpo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A palavra que resta (2021), de Stênio Gardel, é uma história delicada, mas potente,
sobre a descoberta da sexualidade e como a sociedade e o preconceito podem ser nocivos para
um indivíduo. A vida de Raimundo seria completamente distinta se houvesse o acolhimento
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paterno na juventude, e se sua sexualidade fosse tratada como realmente é: algo normal na
existência.
Mas como bem questiona Preciado: “Quem defende os direitos da criança diferente?
Quem defende os direitos do menino que gosta de vestir rosa? E da menina que sonha em se
casar com a melhor amiga? Quem defende os direitos da criança homossexual, da criança
transexual ou transgênero?” (2020, p. 70). O que acontece é que a heterossexualidade é imposta,
qualquer dissidência de gênero ou sexualidade são abafadas e reprimidas a qualquer custo, a
norma precisa ser seguida e a fuga disso deve ser sempre punida, causando diversos traumas
nos sujeitos vitimados.
Raimundo é punido física e psicologicamente na juventude, uma tentativa de correção
do pai, uma expulsão e exclusão da mãe; tendo o caso de seu tio como exemplo que é ainda
mais cruel, pois este fora morto numa tentativa paterna de eliminar o mal pela raiz, de “relegar
à natureza” o papel de corrigir a “aberração” que existia no seio familiar.
O amadurecimento/autoconhecimento de Raimundo é um dos pontos altos da narrativa.
A forma como esse sujeito demorou, mas conseguiu se livrar de toda homofobia internalizada
e abandonar todo o discurso repressivo, lançado por sua família e pelos colegas de trabalho, é
enriquecedor para a história. Também a maneira como assumiu sua amizade com a travesti
Suzzanný e deixou que esta lhe ensinasse a grandeza em vivenciar sua sexualidade plenamente
sem se importar com os julgamentos alheios, é de uma grande delicadeza e força narrativa.
Gardel é um dos grandes escritores brasileiros contemporâneos e A palavra que resta,
com toda sua singeleza e potência, comprovam isso. O autor consegue discutir temas
imprescindíveis como família, dissidência de gênero e sexualidade, amizade, homofobia
externa (a de terceiros) e internalizada, preconceito e violência de forma muito impactante e
delicada. Com isso, buscamos com este trabalho tocar nesses temas e explorá-los um pouco
mais por meio dos referenciais teóricos selecionados para que pudéssemos aprofundar a
discussão e valorizar ainda mais essa obra.
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REFERÊNCIAS
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3. ed. Salvador: Editora Devires, 2017.
BUTLER, Judith P. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução de
Renato Aguiar. 18. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019.
BENTO, Berenice. Desfazendo gênero. Traduzido por Aléxia Bretas, Ana Luiza Gussen,
Beatriz Zampieri, Gabriel Lisboa Ponciano, Luís Felipe Teixeira, Nathan Teixeira, Petra
Bastone e Victor Galdino. Coordenação da tradução Carla Rodrigues. São Paulo: Editora
Unesp, 2022.
BENTO, Berenice. Atos performáticos e a formação dos gêneros: um ensaio sobre a
fenomenologia e teoria feminista. In: Pensamento Feminista: conceitos fundamentais. (Org.)
HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Rio de Janeiro: Bazar do tempo, 2019.
GARDEL, Stênio. A palavra que resta. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.
HALBERSTAM, Jack. A arte queer do fracasso. Recife: Cepe, 2020.
PRECIADO, Paul B. Manifesto contrassexual: práticas subversivas de identidade sexual.
Tradução de Maria Paula Gurgel Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2022.
PRECIADO, Paul B. Um apartamento em Urano: crônicas da travessia. Tradução de Eliana
Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.
RIFANE, Isabella. Sucesso de escritor cearense, obra ‘A palavra que resta’ será adaptada
para os cinemas. Diário do Nordeste, 2023. Disponível em: <
https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/verso/sucesso-de-escritor-cearense-obra-a-
palavra-que-resta-sera-adaptada-para-os-cinemas-1.3450955>. Acesso em 14 jul. 2024.
SOBOTA, Guilherme. Stênio Gardel vence o National Book Awards 2023 na categoria
literatura traduzida. Publishnews, 2023. Disponível em:
<https://www.publishnews.com.br/materias/2023/11/16/stenio-gardel-vence-o-national-book-
awards-2023-na-categoria-de-literatura-traduzida>. Acesso em 14 jul. 2024.
TRÉZ, João Gabriel. Prêmio Jabuti: “A palavra que resta”, de Stênio Gardel, é finalista. O povo,
2022. Disponível em: <https://www.opovo.com.br/vidaearte/2022/10/25/premio-jabuti-a-
palavra-que-resta-de-stenio-gardel-e-finalista.html>. Acesso em 14 jul. 2024.