158
Revista Coletivo Cine-Fórum – RECOCINE | v. 2 - n. 2 | mai-ago | 2024 | ISSN: 2966-0513 | Goiânia, Goiás
regularmente punidos. Porque não existe uma “essência” que o gênero
expressa ou externaliza, nem um ideal claro a ser alcançado; porque gênero
não é um fato, as várias formas de atuação de gênero criam a própria ideia de
gênero, e sem esses atos não existiria gênero nenhum. O gênero é uma
construção que regularmente esconde sua gênese. O acordo tácito coletivo de
performar, produzir e sustentar gêneros discretos e polares como ficções
culturais é disfarçado pela credibilidade da própria produção. Os autores dos
gêneros entram em um transe de suas próprias ficções, e por meio dele os
processos de construção impulsionam a crença da necessidade e natureza. As
possibilidades históricas materializadas por diferentes estilos corporais não
são nada mais que ficções culturais, reguladas por punições, alternadamente
incorporadas e disfarçadas por coerção (Butler, 2019b, p. 217).
Pela primeira vez Raimundo é hostilizado por estar com Suzzanný, por ser interpretado
como um também dissidente de sexualidade, e isso desperta nele novos pensamentos de fuga e
medo:
fiquei com o corte no braço e o olho roxo e a situação todinha na cabeça, no
fundo acho que eu sabia que podia acontecer, mas viver mesmo, e do lado de
cá do balcão, era outra coisa, e não chega nem perto do que Suzzanný deve ter
sentido, fora a costela, eles podiam fazer aquilo? devia poder, a farmácia era
deles, mas eu não ia pagar como todo mundo? pronto, Raimundo, tua fama já
está feita por aqui, é melhor pegar a estrada mesmo, voltar a andar em vez de
ficar num canto só, mas estou satisfeito de parar, parar de rolar feito seixo
carreado pelo rio, era bom ter um lugar pra chamar de casa, e gosto de costurar
com dona Solange, mesmo com a impaciência dela, gosto de morar com as
duas, mas ficar aqui está começando a cobrar um preço, elas pagam um preço,
claro que pagam, mas vivem em paz com elas (Gardel, 2021, p. 127).
Com a vontade de pertencer a algum lugar, de poder ter raízes, Raimundo decide
também “pagar o preço” e permanecer com Suzzanný e dona Solange, ficando, posteriormente,
só com a amiga quando a dona da pensão decide vender a casa e se mudar para o interior para
ficar perto da família. Assim, com o exemplo de Suzzanný, Raimundo vai pouco a pouco
deixando-se contagiar por sua coragem e passando a ter menos medo de se mostrar ao mundo,
menos medo de vivenciar sua sexualidade de forma plena e sem amarras, destruindo o muro
que havia construído para se proteger:
Quando a gente sai na rua é desse jeito, fica segurando minha mão, ainda hoje
tem gente que estranha, homem velho de mão dada com travesti velha, uns
cochichando de um lado, uns olhando atravessado de outro, deixa estranhar,
um dia eles aprendem, eu aprendi, eles aprendem, mas tem que querer, querer
sair da ignorância, é quase como eu querendo aprender a ler e escrever, tomei
a decisão de ver o mundo de outro jeito, me sentir mais dentro dele, porque a
ignorância faz é isso, exclui, isola, e não era isolado que eu vivia? arrodeado
de homem, de caminhoneiro, de chapa, mas sempre com um muro na minha
frente, e quem levantava esse muro era eu, todo dia um pouquinho, quando
me enroscava com mulher na frente deles só pra fazer pose, era um tijolo,
quando insultava ou ria com eles se o assunto era homem que gostava de