Ozana Aparecida do Sacramento
Doutora em Literatura Comparada pela UFMG, professora do IF Sudeste MG - campus São João
del-Rei. E-mail: ozana.sacramento@ifsudestemg.edu.br
PhD in Comparative Literature from UFMG, Professor at IF Sudeste MG São João del-Rei
campus. Email: ozana.sacramento@ifsudestemg.edu.br
João Barreto da Fonseca
https://orcid.org/0000-0003-0425-7666
Professor Doutor em Comunicação e Cultura na Universidade Federal de São João del Rei/MG. E-
mail: joaobarreto@ufsj.edu.br
Professor with a PhD in Communication and Culture at the Federal University of São João del
Rei/MG. Email: joaobarreto@ufsj.edu.br
Deivide Almeida Ávila
https://orcid.org/0000-0003-4407-3204
Mestre em Letras pela UFSJ (Universidade Federal de São João del Rei/MG) na linha de pesquisa
Teoria Literária e Crítica da Cultura. E-mail: almeidavila06@yahoo.com.br
Master's in Literature from UFSJ (Federal University of São João del Rei/MG) in the research area
of Literary Theory and Cultural Criticism. Email: almeidavila06@yahoo.com.br
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LÉLIA GONZÁLEZ:
UMA VOZ BRASILEIRA AMEFRICANIZANDO O FEMINISMO
RESUMO
Neste artigo explanamos o pensamento e luta da filósofa, antropóloga, professora, militante e intelectual
mineira Lélia González (1935-1994) que desmistifica a condição feminina da mulher afro-
latinamericana - muitas vezes vista em condições de subserviência. O feminismo de Lélia atua tanto na
produção de saberes quanto na militância, buscando rompimento com os paradigmas dos pensamentos
advindos de uma matriz colonial. Ela foi à pionegra nas críticas ao feminismo hegemônico e nas
reflexões acerca das diferentes trajetórias de resistências das mulheres ao patriarcado, evidenciando as
histórias das mulheres negras no Brasil, na América Latina e no Caribe. Assim, conjugou experiências
e criou um marco conceitual para a compreensão da identidade brasileira e de seus irmãos de continente
a amefricanidade. Sua trajetória de reivindicações engendra ações políticas feministas
decolonizadoras, comprometida num processo de resistência e insurgência aos poderes estabelecidos
frente ao modelo eurocêntrico. Ainda, o discurso de González, trona-se parte da crítica feminista do Sul
Global a favor da mulher negra que enfrenta o triplo processo de discriminação que envolve a categoria
de raça, de gênero e de classe, através da interpretação histórica sobre essas mulheres enquanto sujeitas
na sociedade. A abrangente trajetória do ativismo da intelectual em questão, bem como seu legado, ainda
atua na contemporaneidade com o estudo, a discussão e a desconstrução do lugar do negro.
Palavras-chave: Feminismo negro; Lélia González; Decolonialidade; Amefricanidade.
LÉLIA GONZÁLEZ:
A BRAZILIAN VOICE AMERINDIANIZING FEMINISM
ABSTRACT
In this article, we explore the thought and struggle of the philosopher, anthropologist, teacher, activist,
and intellectual from Minas Gerais, Lélia González (1935-1994), who demystifies the condition of Afro-
Latin American women—often seen in positions of subservience. Lélia’s feminism operates both in the
production of knowledge and in activism, seeking to break away from paradigms rooted in colonial
thought. She was a pioneering voice in critiquing hegemonic feminism and reflecting on the different
paths of resistance taken by women against patriarchy, highlighting the histories of Black women in
Brazil, Latin America, and the Caribbean. Thus, she combined experiences and created a conceptual
framework for understanding Brazilian identity and that of its continental siblings Amefricanidade
(Amefricanity). Her path of advocacy has driven decolonizing feminist political actions, committed to
a process of resistance and insurgency against the established powers in the face of the Eurocentric
model. Moreover, González's discourse becomes part of the feminist critique of the Global South in
favor of Black women who face a triple process of discrimination involving race, gender, and class
categories, through a historical interpretation of these women as subjects in society. The extensive
trajectory of the intellectual’s activism, as well as her legacy, continues to resonate in contemporary
times through the study, discussion, and deconstruction of the place of Black people.
Keywords: Black Feminism; Lélia González; Decoloniality; Amefricanity.
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INTRODUÇÃO
É importante lembrar que o conceito de raça foi criado pelos europeus como uma
maneira de legitimar a colonização nos países africanos, servindo como justificativa para
explorar e subjugar os negros. No entanto, as declarações colonialistas os posicionaram na
sociedade e moldaram sua imagem ao longo da história. As noções de raça são discursos que
abordam a origem de um grupo e utilizam termos que se referem a características físicas,
qualidades morais, intelectuais e psicológicas, atribuindo preferência e supremacia ao corpo
branco. Dessa forma, os colonizadores relegaram ao corpo, considerado a essência do ser
humano, estereótipos que sirvam para justificar seus atos de dominação e exploração dos
negros.
Na sociedade capitalista contemporânea, um conjunto de desigualdades revela a
complexidade da realidade social e as relações entre indivíduos. A história do Brasil, conforme
narrada na versão oficial, destacou o heroísmo da elite nacional, retratando-os como
vencedores. A preocupação com a voz subalterna e as narrativas dos povos vencidos é recente
e os novos tempos nos inspiram a iluminar os caminhos poucos explorados da história do negro
brasileiro. Na relação raça/classe encontramos respostas para a desigualdade social entre negros
e brancos, podendo ser interpretada e justificada pela existência não somente da hierarquização
de raças, mas pelas condições sociais relegadas ao corpo negro que habita um sujeito.
As mulheres negras, como últimas colocadas na pirâmide social, lutam por igualdade
de gênero, de raça e de classe com um feminismo interseccional que busca solidariedade
política dentre diferentes marcações, sendo essas, resultado da diáspora africana.
Ser mulher negra é estar sob o jugo até mesmo do gênero e da própria raça, uma vez que
as feministas brancas só falam por si e os homens negros falam em prol do machismo racial.
As construções culturais e histórica da dominação e discriminação sofridas pela mulher
negra na sociedade brasileira fazem parte da luta dessas mulheres para a compreensão do que é
pertencer a esse gênero. A racialização tem desempenhado um papel na estratificação e
marcação desse corpo feminino, o que perpetua a existência da sociedade burguesa na
contemporaneidade. Essa sociedade é sustentada pelo patriarcado e pelo capitalismo neoliberal,
que alimentam o mecanismo de desumanização.
A necessidade do neoliberalismo de promover um feminismo dominante é
fundamentada em uma das características essenciais da ideologia capitalista: o esforço de obter
lucro ou gerar capital, utilizando tudo àquilo que, de alguma forma, atenda aos interesses de um
público consumidor alienado pela lógica do mercado. As consequências nefastas dessa
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ideologia têm como único objetivo a obtenção de lucro e têm como base a exploração de mão
de obra mais barata.
A condição social das mulheres negras, por não ter despertado grande interesse nas
feministas, passou a ser estudada por essas mulheres não-brancas, que tiveram apagadas outro
aspecto além dos que já foram reivindicados, incluindo a questão racial.
Dessa forma, o feminismo negro reivindica o caminho para resistir e desconstruir esses
padrões com a decolonialidade, que também é uma crítica direta à modernidade e ao
capitalismo. O feminismo negro nomeia o movimento de mulheres atuantes tanto na esfera da
discussão de gênero quanto na luta antirracista.
Expressões decoloniais reverberam nos estudos de Lélia González com o
compartilhamento de sua própria vivência e sua identidade com o resgate de uma memória
histórica.
A teoria decolonial, de forma crítica, reflete sobre o senso comum e sobre
pressuposições científicas dispostas num tempo e num espaço, com conhecimento e
subjetividade que permite identificar e explicar os modos pelos quais os sujeitos colonizados
experenciam a colonização e, ao mesmo tempo que passam por situações, fornecem ferramentas
contra tal sistema.
A América Latina dispõe de um índice grande de iniquidades e abuso em relação às
mulheres reflexo de muitos séculos de colonização e, o índice de desigualdades e violência é
ainda maior quando colocamos na equação a vida das mulheres negras.
Os estereótipos dessas mulheres pretas não sufocaram suas vozes. O grito de socorro
vem com suas lutas como multidimensionais e com um projeto emancipatório amplo que busca
direitos condizentes ao ser humano. Afinal, essas mulheres deixam de ser somente um corpo e
buscam reconhecimento social como um corpo negro feminino.
A voz de Lélia González, belorizontina, apareceu no cenário brasileiro como uma ação
que questiona o lugar emancipatório da mulher negra. É inegável o seu protagonismo no que
hoje intitulamos feminismo negro. A autora defende uma questão relevante e urgente a ser
pontuada pelo movimento de mulheres: qual é o lugar da mulher negra na sociedade brasileira?
POR UM FEMINISMO DECOLONIAL AFRO-LATINOAMERICANO
No Brasil, a voz da filósofa, antropóloga, professora e intelectual mineira Lélia
González (1935-1994) desmistifica a condição feminina da mulher afro-latinamericana que
muitas vezes é vista em condições de subserviência. Ela foi à pioneira nas críticas ao feminismo
hegemônico e nas reflexões acerca das diferentes trajetórias de resistências das mulheres ao
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patriarcado, evidenciando as histórias das mulheres negras no Brasil, na América Latina e no
Caribe. Para tanto, atuou nas discussões sobre a Constituição de 1988 e integrou o primeiro
Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, na mesma década. Correu o mundo e, ao representar
o Brasil em debates sobre as condições de exploração e opressão dos negros e das mulheres em
eventos nos Estados Unidos, na África e na América Latina, conjugou experiências e criou um
marco conceitual para a compreensão da identidade brasileira e de seus irmãos de continente:
a amefricanidade.
González deixa claro que as mulheres negras, pelo desenvolvimento colonial, se
encontram muitas vezes na figura da “mãe preta” responsável pelo cuidado, ou seja, pelo papel
da trabalhadora doméstica e a autora afirma que “enquanto empregada doméstica, ela sofre um
processo de reforço quanto à internalização da diferença, da subordinação e da ‘inferioridade’
que lhe seriam peculiares” (González, 2020, p.58).
A antropóloga também aborda o processo de sexualização da mulher, principalmente a
questão da mulata como função e como produto de exportação ao chamar atenção sobre os
desdobramentos desse processo. González afirma que a exploração sexual da mulher negra
impõe um “[...] processos extremo de alienação imposto pelo sistema” (p.59) que questiona a
dignidade da mulher negra, ressaltando que a “[...] superexploração econômico-sexual de que
falamos acima, além da reprodução/perpetuação de um dos mitos divulgados a partir de Freyre:
o da sensualidade especial da mulher negra” (p.60).
Contrapondo a situação da mulher preta, Vergès (2020, p. 55) diz que “a mulher branca
foi literalmente uma produção da colônia” e, apud Elsa Dorlin, explica que “o modelo feminino
da ‘mãe’ branca, saudável, maternal, em oposição às figuras de uma feminilidade “degenerada”
a feiticeira, a escrava africana -, dá corpo à Nação.”
Apesar da inferiorização da mulher negra, González disse que:
[ela] exerceu um importante papel no âmbito da estrutura familiar ao unir a
comunidade negra para resistir aos efeitos do capitalismo e aos valores de uma
cultura ocidental burguesa. Como mãe (real ou simbólica), ela foi uma grande
geradora na perpetuação dos valores culturais afro-brasileiros e em sua
transmissão para a próxima geração (González, 2020, p. 161).
A importância da mulher no sistema capitalista decolonial é abordada por González
como harmonia no ambiente doméstico, mas, ela é imprescindível, também, em ocasiões de
resistências.
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Ainda, acerca da condição das mulheres negras na sociedade brasileira, González disse
que:
Quanto à mulher negra, que se pense em sua falta na perspectiva quanto à
possibilidade de novas alternativas. Ser negra e mulher no Brasil, repetimos,
é ser objeto de tripla discriminação, uma vez que os estereótipos gerados pelo
racismo e pelo sexismo a colocam no mais baixo nível de opressão. Enquanto
ser homem é objeto da perseguição, repressão e violência policiais (para o
cidadão negro brasileiro, desemprego é sinônimo de vadiagem; é assim que
pensa e age a polícia brasileira), ela se volta para a prestação de serviços
domésticos junto às famílias das classes média e alta da formação social
brasileira (González, 1982, p. 97).
A categorização racial é bem clara na elucidação da ativista e mostra que à própria
construção histórica de gêneros é o ponto crucial na estigmatização destas identidades. A
ocorrência dessa marcação pode ser vista, mais precisamente, segundo González, a partir das
transformações econômicas ocorridas no país como consequência do duro regime militar da
ditadura no (des)governo Vargas
1
, cujos negros e negras se tornaram parte da população
marginalizada. Entre tantas desvantagens que sofreu o negro, o desemprego e a violência
policial que o apartou dos centros, o colocou à margem do crescimento econômico do país, o
qual não foi beneficiado com os progressos do chamado “milagre econômico”, que ocorreu nos
anos de 1970, os “anos de chumbo” da ditadura. Contudo, em todo processo de uma construção
da nacionalidade brasileira, pensando aqui como um projeto de Estado, a população negra não
foi incorporada e, na verdade, ela nunca foi pensada.
No texto “Mulher Negra”, publicado no ano de 1984, González intitula o apêndice como
carta denúncia, e argumenta que “numa sociedade onde o racismo e o sexismo, enquanto fortes
sustentáculos da ideologia de dominação fazem dos negros e das mulheres cidadãos de segunda
classe, não é difícil visualizar a terrível carga de discriminação a que está sujeita a mulher
negra” (González, 2020, p.109). em seu texto “A importância da organização da mulher
negra no processo de transformação social”, a ativista argumenta a necessidade do
entendimento dessas opressões e lógicas de subordinações, ao afirmar que “[...] esta questão é
de caráter ético e político. Se estamos comprometidas com um projeto de transformação social,
não podemos ser convenientes com posturas ideológicas de exclusão, que privilegiam um
aspecto de realidade por nós vividas [...]” (González, 2020, p. 270).
Os textos da filósofa deixam claro que a desarticulação das noções da tríade gênero,
raça e classe não dão conta de uma compreensão das hierarquizações sociais e das
1
No livro Lugar de Negro (1982), em parceria com o antropólogo argentino Carlos Hasenbalg, Gonzalez discute
as relações entre classe, raça e gênero no contexto da ditadura militar.
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desigualdades que ainda tem resquícios do processo colonial e da formação da nação brasileira.
A partir do pensamento desenvolvido por Lélia, o projeto colonialista instituído no Brasil ainda
sustenta estruturas de desigualdades ao negar outras formas de vida se não a que a própria
ativista chama de “modelo ariano de explicação” (p.267), que ainda é sustentado pelo racismo.
Tomando a omissão da participação do negro na sociedade, que a antropóloga inclui
como racismo, é visto como um projeto de denegação (negação de um racismo) que está
presente na infância e leva o negro para a força de trabalho, cujas mulheres negras pertencem
ao grupo mais explorado da sociedade (p.160). Para a ativista, a necessidade de pensar uma
Améfrica Ladina é um processo de resgates das culturas negras e ameríndias, questionando à
continuação do pensar racional do projeto colonial. Essa nova lente pensada pela autora:
Trata-se de um olhar novo e criativo no enfoque da formação histórico-
cultural do Brasil que, por razões de ordem geográfica e, sobretudo, de ordem
do inconsciente, não vem a ser o que em geral se afirmar: um país cujas
formações do inconsciente são exclusivamente europeias, brancas. Ao
contrário, ele é uma América Africana cuja latinidade, por inexistente, teve
trocado o t pelo d para, sim, ter seu nome assumido com todas as letras:
América Ladina (não é por acaso que a neurose cultural brasileira tem no
racismo seu sintoma por excelência) (González, 2020, p. 354).
Pensar a partir dessa perspectiva implicaria em transcender a colonialidade, a fim de
estabelecer novas formas de pensamento. Seria necessário desenvolver uma nova epistemologia
e novas categorias que sejam genuinamente brasileiras, a partir de uma afrolatinidade que
reconheça a participação da população negra e ameríndia que são sistematicamente
inferiorizadas por pensamentos eurocêntricos. Assim, a luta de Lélia González mostra que o
feminismo negro precisa superar os resquícios dos poderes instaurados no período colonial,
destacando a importância sobre um feminismo afro-latino-americano. O cânone de outros
feminismos está instaurado em imagens brancas e pensamentos europeus, como por exemplo,
as Sufragistas e o movimento de mulheres estadunidenses que lutavam por libertação, mas não
estavam preocupadas com a libertação do povo negro ou pela reivindicação dos direitos do
trabalho feminino, quando as mulheres negras já trabalhavam em condições subumanas.
Sueli Carneiro destaca as limitações das mulheres dentro do feminismo para pensar
dentro da categoria mulheres e destaca que:
A origem branca e ocidental do feminismo estabeleceu sua hegemonia na
equação das diferenças de gênero e tem determinado que as mulheres não
brancas e pobres, de todas as partes do mundo, lutem para integrar em seu
ideário as especificidades raciais, étnicas, culturais, religiosas e de classe
social (Cerneiro, 2003, p. 331).
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Essa não impropriedade das mulheres que reivindica na individualidade é descrita por
Lélia González:
Quando nos reportamos às amefricanas da chamada América Latina, e do
Brasil em particular, nossa percepção descobre uma grande resistência ao
feminismo. É como se ela fosse algo muito estranho para elas. Herdeiras de
uma outra cultura ancestral, cuja dinâmica histórica revela a diferença pelo
viés das desigualdades raciais, elas, de certa forma, sabem mais de
mulheridade do que femininidade, de mulherismo do que feminismo. Sem
contar que sabem mais de solidariedade do que competição, de coletivismo
do que individualismo (González, 2020, p. 269)
2
.
Ao explicitar a mulher como uma categoria, independente de raça, que González, a partir
da leitura de mulherismo
3
, de Alice Walker, e do entendimento de Simone de Beauvoir, sobre
gênero ser uma construção social, quando diz que “não se nasce mulher, torna-se mulher”
4
, que
a feminista consegue compara as diferenças dos feminismos, que não sororidade
5
em relação
ao gênero. Contudo, existe a importância substancial em pensar em outros feminismos, como o
que compreenda “[...] o “caráter multirracial e pluricultural das sociedades [...]” (González,
2020, p.142).
Postular um feminismo com a visão de González que pensou a inclusão, a equidade e a
interseccionalidade com tantas outras feministas, pautado além da tríade raça, classe e gênero,
é entender o processo de colonização como criação de diversas realidades de sobrevivência e
buscar promover uma transformação com e para melhores condições de manutenção na
sociedade.
A luta das feministas do Sul global surge no contexto da diáspora negra para recuperar
as histórias de resistência dos povos colonizados contra as violências organizadas pela
colonialidade do poder. Formular um novo pensamento sobre realidades e novas vivências se
faz a partir de um novo entendimento de América, abarcando processos democráticos que
compreendam o processo histórico específico da colonialidade e seus estigmas. Sobre isso,
Lélia disse que:
As implicações políticas e culturais da categoria de Amefricanidade
(“Amefricanity”) são, de fato, democráticas; exatamente porque o próprio
termo nos permite ultrapassar as limitações de caráter territorial, linguístico e
2
Grifos da autora que destacam a oposição das categorias do feminismo.
3
O Mulherismo Africana é uma teoria social que tem como ideologia a criação de novos critérios, conceitos e
pensamentos para além da vivência ocidental liberal branca.
4
Beauvoir argumenta que a mulher não nasce com uma essência definida, ela se torna o que é a partir de sua
educação e de suas escolhas.
5
Sororidade diz respeito à união das mulheres, o que envolve um sentimento de irmandade, solidariedade e
companheirismo.
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ideológico, abrindo novas perspectivas para um entendimento mais profundo
dessa parte do mundo onde ela se manifesta: a América como um todo (Sul,
Central, Norte e insular). Para além de seu caráter puramente geográfico, a
categoria de Amefricanidade incorpora todo um processo histórico de intensa
dinâmica cultural (González, 2019, p. 362).
Entender e refletir sobre amefricanidade juntamente com um feminismo afro-latino-
americano resulta um feminismo decolonial: um novo olhar que se faz necessário para além das
categorias estabelecidas, uma forma mais completa que leva em conta os processos
heterogêneos e múltiplos que infringem o corpo feminino. E, Améfrica como um sistema
etnográfico (González, 2019, p. 363), é o racismo como sistema de hierarquia e o gênero como
edificadores dessa hierarquização que determinam lugares, que faz com que o feminismo
decolonial questione esses espaços ainda naturalizados no processo histórico brasileiro.
O uso da linguagem como mecanismo de poder e à sua utilização para perpetuar
hierarquizações racializadas, foi criticado por González como confronto aos padrões de
linguagem exigidos na academia, tendo como objetivo em explicitar o preconceito racial
existente na própria definição da língua materna brasileira (Cardoso, 2012). A necessidade de
afirmar a mistura entre a língua herdada de Portugal e às referências linguísticas africanas, foi
denominado por Lélia:
[...] chamo de “pretuguês” e que nada mais é marca de africanização do
português falado no Brasil (nunca esquecendo que o colonizador
chamava os escravos africanos de “pretos” e de “crioulos”, os nascidos
no Brasil), é facilmente constatável sobretudo no espanhol da região
caribenha. [...] Desnecessário dizer o quanto tudo isso é encoberto pelo
veu ideológico do branqueamento, é recalcado por classificações
eurocêntricas do tipo “cultura popular”, “folclore nacional” etc., que
minimizam a importância da contribuição negra (González, 1988, p.
70).
A ideia do “pretuguês” evidenciado pela antropóloga, reconhece e agrega a riqueza da
língua materna brasileira - a indígena, e expressa a democratização e a extensão da importância
dessa língua ser compartilhada e acessada socialmente por todos. Também, o neologismo em
questão, se refere à influência que os idiomas de origem africana têm no português falado no
Brasil.
Lélia González foi a “pionegra” que mudou a história do feminismo negro brasileiro e
a frente do MNU
6
desmistificou a escravidão como elemento civilizatório. Também foi a
6
O Movimento Negro Unificado é um grupo de ativismo político, cultural e social que surgiu no ano de 1978
como expressão da ebulição que sucede uma série de episódios racistas na cidade de São Paulo.
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primeira mulher negra a sair do país como representante do Movimento e participante em
congressos e seminários.
Tais vivências foram importantes para que a ativista buscasse a defesa das mulheres
negras frente à sociedade civil, econômica e sexista. González buscou e reafirmou a identidade
da mulher negra. “Negro tem que ter nome e sobrenome, senão os brancos arranjam um apelido
ao gosto deles”, dizia à filósofa que é referência no ativismo e inspiração para tantas outras
feministas. Ainda: “a gente não nasce negro, a gente se torna negro.”
7
Esse “tornar-se negro”
revela uma identidade que vai se construindo através do e pelo olhar do outro branco e nessa
batalha, torna-se uma conquista “Essa identidade negra não é uma coisa pronta, acabada”, ou
seja, a racionalidade perpetua e questiona a pele escura como ser humano. Então, “uma pessoa
negra que tem consciência de sua negritude está na luta contra o racismo”, as outras, estão na
contramão do sentimento evocado pelo outro, “[ou] são mulatas, marrons, pardos etc.”
(González, 2020, p. 75).
O mito da democracia racial, um conceito que nega a existência do racismo no Brasil,
apresentou uma visão idealizada promovida pelos governos militares e amplamente aceita pelos
brasileiros. No entanto, Lélia González rejeitou essa concepção harmoniosa entre portugueses,
africanos e indígenas, pois esse sistema ignora a violência nas relações com esses grupos e nega
a existência do racismo. Ela buscava o reconhecimento da cultura africana e suas contribuições
(amefricanidade), destacando a afrodescendência presente na língua, na culinária, nos gestos,
na dança e na musicalidade brasileira.
No ensaio Racismo e Sexismo na cultura brasileira (1980), apresentado na reunião da
Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e posteriormente publicado na
Revista Ciências Sociais Hoje em 1984, a ativista trabalhou a tese de que o racismo é a
sintomática da neurose cultural brasileira, ideia essa que remete à teoria psicanalítica, com a
necessidade de evidenciar suas concepções de sintoma e neurose
8
.
As principais publicações de Lélia González são compostas por artigos que interpretam
e pontuam sua visão do Brasil: “Qual o lugar da mulher negra enquanto força de trabalho?”
(1978); “A juventude negra brasileira e a questão do desemprego” (1979a); “Mulher negra: um
retrato” (1979b); “Racismo e sexismo na cultura brasileira” (1980a); “A questão negra no
Brasil” (1980b); “A mulher negra: essa quilombola” (1981a); “Democracia racial? Nada disso!”
7
Parafraseando Simone de Beauvoir e antes recriado por Neusa Santos Sousa no livro “Tornar-se negro”, Gonzalez
propõe uma versão não essencialista da raça quando Beauvoir conceituava os direitos das mulheres como
“universal”, esquecendo que o racismo redefine os direitos em questão. Assim, a mulher negra não era inclusa, até
porque, ela era subordinada à mulher branca.
8
Gonzalez mobiliza a noção de sintoma em um sentido psicanalítico, referindo a autores como Freud e Lacan.
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(1981b); “A mulher negra na sociedade brasileira: uma abordagem político-econômica”
(1982b); “De Palmares às escolas de samba, tamos aí” (1982c); “Racismo por omissão” (1983);
“Mulher Negra” (1984); “O movimento Negro Unificado: Um novo estágio na mobilização
política negra” (1985a) este posteriormente publicado também em inglês; “A mulher negra
no Brasil” (1985b); “Mito feminino na revolução malê.” (1985c); “Insurreições negras e
sociedade brasileira” (19985d); “Nanny: pilar de amefricanidade” (1988a); “Por um feminismo
afrolatinoamericano” (1988b); “A categoria político-cultural de amefricanidade” (1988c). E os
livros “Lugar de negro” (1982), em coautoria com Carlos A. Hasenbalg, e “Festas populares no
Brasil”. (1987).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste artigo, destacamos a importância de Lélia González como uma intérprete do
Brasil para a história do pensamento econômico e social brasileiro que, como uma intelectual
orgânica dos movimentos da classe trabalhadora, do movimento negro e do feminismo negro
brasileiro, destacou sua compreensão da formação econômica-social brasileira, destacando os
elementos de gênero, raça e classe como critérios centrais para o entendimento de como se forja
e se desenvolve por aqui o capitalismo.
A luta do feminismo negro com Lélia González estabelece um diálogo e têm influências
do pensamento feminista dos países norte americanos e esteve vinculado diretamente ao
anticolonialismo.
González foi uma intelectual pública preocupada também com os acontecimentos
nacionais. Seu engajamento estava a favor da democracia racial, do feminismo, do movimento
negro, da questão nacional e da cultura brasileira com crítica ao eurocentrismo e ao sexismo.
O discurso de Lélia tornou-se parte da crítica feminista com a visão de terceiro mundo,
buscando através da interpretação histórica sobre as mulheres negras, as amefricanas, a
desconstruir a produção colonialista.
Em seus textos, o tema da mulher negra é estímulo para replicar as representações
coloniais que reforçam e reproduzem desigualdades no cotidiano. Na compreensão da
intelectual, ideologias nacionais como por exemplo a democracia racial, se reproduziram e
naturalizaram a experiência da escravidão e seus efeitos sobre a sociedade capitalista. A ideia
de superação dessa democracia seria a condição não apenas para o combate ao racismo, mas
também para o estabelecimento da verdadeira democracia política no país.
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Lélia González é referência nos estudos feministas e antirracistas, reconhecida mundo
afora, ela é vista como um ícone do feminismo negro brasileiro, com destaque renovado sobre
o seu pensamento com abordagem decolonial, interseccional e psicanalítica.
O não silenciamento é insurgência negra nos estudos de González e se tornou uma das
suas marcas distintivas em contraste à intelectualidade de sua geração. O legado de Lélia
González nos convoca a luta a favor da mulher negra, uma luta essencial e urgente, pois,
enquanto esse gênero continua sendo alvo de ataques, toda a humanidade corre perigo.
Lélia González foi e ainda é referência e um dos pilares edificantes do feminismo negro
no Brasil e o colocou no palco da história.
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Revista Coletivo Cine-Fórum RECOCINE | v. 2 - n. 2 | mai-ago | 2024 | ISSN: 2966-0513 | Goiânia, Goiás
REFERÊNCIAS
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Heloisa Buarque de Holanda. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019.
CARNEIRO, Sueli. Escritos de uma vida. São Paulo: Editora Jandaíra, 2020.
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VERGÈS, Françoise. Um feminismo decolonial. Trad. de Jamille Pinheiro Dias e Raquel
Camargo. São Paulo: Ubu Editora, 2020.