RECOCINE | v. 2 - n. 1 | jan-abr | 2024 | ISSN: 2966-0513  
Valdemir Miotello  
Doutor em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas (2001). É  
Professor Associado IV (aposentado) da Universidade Federal de São  
Carlos, lotado no Departamento de Letras. Tem experiência na área de  
Linguística, com ênfase em Estudos Bakhtinianos. É líder do Grupo de  
Estudos dos Gêneros do Discurso - GEGe/UFSCar.  
PhD in Linguistics from the State University of Campinas (2001). He is  
Associate Professor IV (retired) at the Federal University of São Carlos,  
working in the Department of Letters. He has experience in the area of  
Linguistics, with an emphasis on Bakhtinian Studies. He is leader of the  
Discourse Genres Study Group - GEGe/UFSCar.  
Augusto Ponzio  
Professor de Filosofia e Teoria dei linguaggi e Professor emérito, ensinou  
Filosofia da Linguagem e Linguística geral na Università di Bari “Aldo  
Moro”. Estuda e publica sobre Filosofia da Linguagem, Semiótica e  
Tradução, dentre outros temas, dedicando-se à filosofia de Emmanuel  
Levinas, Mikhail Bakhtin, Roland Barthes, dentre outros  
Teacher of Philosophy and Theory of Linguistics and Professor Emeritus,  
he taught Philosophy of Language and general Linguistics at the Università  
di Bari “Aldo Moro”. Studies and publishes on Philosophy of Language,  
Semiotics and Translation, among other topics, dedicating himself to the  
philosophy of Emmanuel Levinas, Mikhail Bakhtin, Roland Barthes,  
among others  
Transcrição e Tradução de Marisol Barenco de Mello, professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal  
Fluminense, atuando no Programa de Pós-graduação em Educação; Integrante do Grupo Atos/UFF.  
LICENÇA ATRIBUIÇÃO NÃO COMERCIAL 4.0 INTERNACIONAL CREATIVE COMMONS CC BY-NC  
DIÁLOGO SOBRE A PALAVRA *  
Augusto Ponzio1 conversando com Valdemir Miotello2  
Miotello: Augusto, é um prazer ver você, me agrada muito conversar um pouco com você.  
Augusto: Também a mim me agrada poder falar com você.  
Miotello: Como já tinha dito antes, gostaria de falar dos problemas que dizem respeito à  
palavra, a palavra na nossa vida, de cada um. E a primeira pergunta diz respeito à relação entre  
palavra e consciência, a palavra como formadora da nossa consciência, como sua nutrição. Hoje  
as palavras estão fixadas, marcadas, estereotipadas, por causa da ideologia, da ideológica  
dominante. A orientação para um certo fascismo tende a fixar nelas um significado único,  
eliminando todas os outros possíveis significados; estamos em uma situação muito encaixotada,  
sim, dentro de uma caixa. Gostaria de te escutar um pouco sobre essa relação palavra-  
consciência, sobretudo considerando o fato que se tende a dar às palavras, cada vez mais, um  
significado único, o dominante.  
Augusto: Obrigado, Miotello, por ter me chamado para essa conversa. Começarei dizendo que  
há ditos comuns enganados sobre a palavra. Há modos de dizer errados, enganados em relação  
às palavras. Um desses é “Fatos, não palavras”, não palavras, mas fatos. Bem, os fatos se fazem  
com as palavras. Não pode haver fatos sem as palavras. As palavras são o que realiza a relação  
com os outros, as palavras são sempre semi-alheias, as palavras são o social; o social se faz com  
as palavras. Há também o blá blá blá, o blá blá blá dos “políticos”, por exemplo, mas também  
isso faz o social3. O nosso social é feito também do blá blá blá dos “políticos”. Portanto, as  
palavras fazem os fatos. As palavras fazem a realidade. O que pede a palavra? A palavra pede  
escuta. Uma filosofia da linguagem, uma verdadeira filosofia da linguagem deve ser uma  
filosofia da escuta. A palavra pede a compreensão respondente. Há um outro dito comum, um  
outro modo de dizer: “A palavra é de prata”; o silêncio é de ouro. Não é o silêncio que é de  
ouro, mas o calar. Mikhail Bakhtin4 estabelece uma diferença entre o silêncio e o calar. No  
silêncio ninguém fala, ou há alguém que impõe o silêncio, e interroga, e os outros devem  
*
Valdemir Miotello, Uma conversa com Augusto Ponzio. A palavra libertaria é a palavra da escuta, 11 de  
dezembro de 2021 pelo Instagran. Transcrição e Tradução de Marisol Barenco de Mello.  
1 Augusto Ponzio aposentado é professor na Universidade Aldo Moro, de Bari, Itália.  
2 Valdemir Miotello é professor aposentada da UFSCar, São Carlos, São Paulo, Brasil.  
3 Cfr. Augusto Ponzio, “Filosofia da linguagem como arte da escuta”, Intr. a A. Ponzio, Patrizia Calefato, Susan  
Petrilli, Fundamentos de Filosofia da Linguagem, Petrópolis, Vozes, 2007, pp. 9- 68.  
4 Michail Bachtin e il suo Circolo, Opere 1919-1930, tr. con testo russo a fronte e cura di A. Ponzio, in coll. Con  
Luciano Ponzio, Milano, Bompiani, 2014.  
10  
Revista Coletivo Cine-Fórum RECOCINE | v. 2 - n. 1 | jan-abr | 2024 | ISSN: 2966-0513 | Goiânia, Goiás  
         
responder, como faz o “comissário”, comissário de polícia, comissário dos exames. “Silêncio!  
Eu faço as perguntas e tu deves responder”. O calar, e não o silêncio, o calar é de ouro. O calar  
é escuta, o calar é colocar-se à escuta do outro. O calar é compreensão respondente. Portanto,  
não o silêncio e o querer ouvir, mas o calar é de ouro, o colocar-se à escuta. E a escuta não se  
pode impor. E se, ao contrário, se impõe, então escutar se torna obedecer. “Devem-me, devem-  
me escutar!” = “Devem-me, devem-me obedecer”. Outra coisa, Miotello, que posso  
acrescentar, sempre sobre os ditos comuns, é o seguinte modo de dizer. Mas dessa vez errado é  
o sentido que se deveria dar à enunciação, porque literalmente ela é verdadeira. Trata-se de uma  
daquelas enunciações formuladas em latim para aumentar o seu peso. Verba volant, scripta  
manent. O que se quer dizer com isso é que as palavras são momentâneas, passageiras,  
transitórias, efêmeras, frágeis, fugazes. Ao contrário, a escritura, melhor dizendo, as  
transcrições são estáveis, sobre essas se pode dar crédito. Bem, nós podemos dizer, ao contrário:  
Sim! É verdade, é justamente assim: as palavras voam, as palavras são ligeiras, as palavras são  
capazes de voar alto e ir longe, enquanto a escritura, a escritura-transcrição fica na terra, segue  
perto do chão, não se alça em voo. Isso, as palavras sobem alto, até a ter um horizonte, um  
espaço-tempo grande, imenso. Aqui estamos falando também do nosso livro, Miotello. O nosso  
livro: A ligeireza da palavra5. Eis! A ligeireza da palavra. E me refiro tanto ao seu tema, ao  
seu conteúdo, como ao livro mesmo, que desejo, que desejamos juntos nós dois, que seja capaz  
de voar, um livro, um livrinho, que saiba voar alto.  
Miotello: Augusto, sim, o nosso livro, a nossa palavra. Augusto, quando você diz “a palavra  
voa”, eu penso na palavra que vem do cotidiano, isto é, do encontro entre eu e o outro, entre a  
nossa palavra e a do outro, mas eu sinto que, nessa relação, haja também uma palavra mais  
pesada, a palavra “oficial”, que deseja impor-se, durar, convencer sobre a manutenção do status  
quo, sobre uma ideologia conservadora, que se opõe a qualquer proposta de mudança, de  
renovação. Como você vê essa relação entre a palavra que voa, a palavra do “cotidiano”, e essa  
palavra que, ao invés, pesa, que se apresenta como palavra oficial?  
Augusto: Sim, há palavras pesadas o peso das palavras , as palavras que se impõem, que  
querem impor-se, que querem afirmar e afirmarem-se, que querem dizer como estão as coisas,  
como as coisas devem estar e como as palavras querem que sejam, que devam dizer. Esta é a  
supremacia da palavra, melhor, sobre a palavra, supremacia que, porém, é ilusória. A palavra  
que se impõe, a palavra soberba, vive em um tempo pequeno; a palavra ligeira, da qual estamos  
5
Augusto Ponzio e Valdemir Miotello, Em diálogo, A ligeireza da palavra, São Carlos (Brasil), Pedro & João  
Editores, 2019.  
11  
Revista Coletivo Cine-Fórum RECOCINE | v. 2 - n. 1 | jan-abr | 2024 | ISSN: 2966-0513 | Goiânia, Goiás  
 
falando, vivem em um tempo grande. A palavra ligeira é também, sobretudo, a palavra da  
escritura literária. Bakhtin diz que a escritura literária vive no tempo grande. O que isso  
significa? Que nós ainda lemos Homero, que nós ainda lemos Dante, que nós ainda lemos  
Shakespeare, e as suas palavras dizem respeito a nós, porque são verdadeiras palavras, que  
continuam a se mover, a voar, non tempo e no espaço. Há palavras pesadas, mas essas palavras  
pesadas não podem durar, não têm futuro. A palavra, a palavra ligeira, a palavra da qual estamos  
falando, a palavra capaz de voar, é como a erva quebra-pedra à que Emmanuel Levinas se  
refere. Existe um tipo de erva que consegue atravessar paredes, a erva que quebra a pedra: erva  
que consegue passar um uma parte à outra da parede. Assim é a palavra. A palavra é como a  
erva que quebra as paredes. Como parede é separação, limite, consegue ultrapassar os limites,  
consegue ultrapassar as divisões. Quais divisões? De estado social, de raça, de nação, de gênero,  
de etnia. Não há paredes que a palavra não possa ultrapassar. A palavra circula, e essa circulação  
da palavra é a nossa salvação. Fazer circular a palavra. Juntos, nós dois, estamos fazendo algo  
do gênero, estamos fazendo circular palavras, e agradeço a todos aqueles que nos escutam,  
porque são pessoas de boa vontade, são pessoas que contribuem para a paz no mundo, são  
pessoas que podemos indicar como construtores de paz. Recentemente publicamos um livro da  
série “Athanor” intitulado Maestri di segni e costruttori di pace. Mestres de signos e  
construtores de paz. Construtores de paz são aqueles que usam a palavra para o encontro, usam  
a palavra para a escuta, usam a palavra para o diálogo. Todos esses são os construtores de paz.  
Miotello: Augusto, hoje convivemos também com as pessoas, os governos, que querem  
silenciar a palavra, querem dominá-la, controlá-la, querem cortar as palavras das pessoas, de  
modo que não possam falar. Não existem só quem constrói a paz, há quem se oponha à paz,  
quem se opõe à circulação das palavras, que pretende proibir às pessoas de ter palavras próprias.  
O que dizer dessa relação entre aqueles que constroem a paz e os que querem destruir a paz,  
destruindo também as palavras?  
Augusto: Miotello, se a palavra é ofensa, se a palavra se torna obstáculo, se a palavra se torna  
fechamento do eu, o eu se atrofia. As pessoas que pretendem dizer como estão as coisas, de  
afirmarem a si mesmos, as pessoas que não escutam, dão origem a um eu que se atrofia. O  
atrofiamento do eu. O eu se enfeia, se esvazia. Uma palavra que vive na experiência grande, no  
tempo grande, é a palavra, eu dizia antes, do cronotopo expressão de Bakhtin da literatura,  
a palavra da escritura literária. Mas atenção! A escritura literária, a arte, a estética, parecia  
simplesmente algo acessório, um “a mais”: “Depois estudarei também literatura, depois lerei  
também um romance. Não tenho tempo agora”. Não, não, essas são formativas. Bakhtin, no seu  
12  
Revista Coletivo Cine-Fórum RECOCINE | v. 2 - n. 1 | jan-abr | 2024 | ISSN: 2966-0513 | Goiânia, Goiás  
primeiro texto de 1919 mostra como Dostoiévski em “Crime e Castigo” consegue fazer o leitor  
se enamorar de quem? De um assassino. Amar o amável é fácil; amar o odioso é difícil.  
Dostoiévski consegue fazer isso. Então diz Bakhtin: aquilo que aprendi na literatura, devo  
aplicar na vida. Comportem-se na vida como se comportou na literatura: escutando; escutando  
também quem está excluído do social, quem errou, quem parece não ter o direito ao  
acolhimento. Então é isso, a escritura literária nos abre ao acolhimento, ao acolhimento do  
outro, ao acolhimento do migrante, ao acolhimento do diferente, ao acolhimento do pobre, ao  
acolhimento do que parece abjeto, e abjeto não pode ser, porque é o outro de mim, o outro com  
sua palavra, e a palavra quer encontrar a outra palavra. A palavra é sempre aberta ao outro, é o  
eu que se fecha. Mas a palavra abre sempre para a alteridade. Por quê? Porque, de onde  
tomamos a palavra? Dos dicionários? As palavras que usamos, as palavras minhas que estou  
usando agora, de onde eu as tomei? Eu as tomei também de você, Miotello, eu as tomei também  
de Bakhtin, eu as tomei de todos os autores com quem me encontrei; eu as tomei de minha mãe,  
eu as tomei do meu pai, eu as tomei da boca dos outros, da boca dos outros, não dos dicionários.  
A palavra é do outro. Não posso jamais dizer: “minha palavra”, “minha palavra de honra”, a  
palavra é do outro. O que podemos dizer da palavra a respeito da sua relação com o homem?  
Se usa essa expressão: homem de palavra. O homem de palavra é aquele que mantém as suas  
promessas, aquele que mantém seus juramentos, justamente: um homem de palavra. Na  
verdade, não somos todos nós homens de palavra, porque é a palavra que nos faz. Não somos  
nós a fazer as palavras; são as palavras que nos fazem. Desse ponto de vista retorno ao que quis  
dizer quando disse que as palavras fazem os fatos: bem, isso vale também para como nós somos  
feitos. Diga-me como falas, diga-me com quem falas, e te direi quem és. Essa é a palavra.  
Miotello: Paulo Freire fala também dessa questão. E uma observação que faz sobre a relação  
entre as pessoas é que para chegar a uma relação desumana, aquela do opressor e do oprimido,  
é preciso deixar o oprimido sem palavras, cortar nele a palavra, cortar a possibilidade de dizer  
aquilo que poderia ser o mundo no qual vive. Assim, se não posso falar ao mundo, dizer a minha  
palavra, aquilo que me coloca em um estado de opressão, me torno oprimido. E pode haver  
também dentro de mim um outro, um opressor, que diz, dentro de mim, a sua palavra, e que me  
oprime. Como você vê a possibilidade que, nessa situação, se possa produzir uma palavra  
libertária, se possa dizer a palavra que liberta?  
Augusto: A batalha, posso dizer, que devemos conduzir é dura, não é simples. Há uma espécie  
de obstinação, há a palavra obstinada, palavra que se quer emparedar, que ergue muros, que  
ergue obstáculos, que estabelece limites, que estabelece diferenças: eu mando, você deve  
13  
Revista Coletivo Cine-Fórum RECOCINE | v. 2 - n. 1 | jan-abr | 2024 | ISSN: 2966-0513 | Goiânia, Goiás  
obedecer. Mas isso não pode durar, a palavra é subversiva, a palavra é capaz de subversão. Há  
um autor importante na escritura, Edmond Jabès, que usa a expressão “A subversão não  
suspeita”. Nós poderíamos falar da palavra dizendo que a palavra é subversiva mesmo quando  
não nos damos conta disso. E não há ditador, e não há muro que possa impedir à palavra de  
infiltrar-se. A palavra, eu dizia antes, quebra os muros, como um certo tipo de erva que passa  
de uma parte à outra do muro. A palavra consegue isso. Eu tenho uma grande confiança na  
palavra não na força humana, não nas revoltas, não nos exércitos, não na guerra,  
absolutamente não. Bakhtin observa, nos Apontamentos dos anos 1970-71 que quando é  
imposto o silêncio, a palavra consegue encontrar o modo para se fazer escutar: se faz escutar  
com aquilo que Bakhtin chama “as formas do calar”: a ironia, a paródia, a alegoria; as formas,  
como ele também diz, do “riso freado”, da comicidade sutil. A palavra consegue vencer a  
imposição do silêncio; e não é verdade o que dizia Maquiavel quando afirmava que os profetas  
desarmados se arruinaram, acabaram mal, faliram. Não. O profeta desarmado, com a sua  
palavra, vai conseguir. Não há armas que possam resistir às palavras. As palavras duram além  
da guerra. E podemos ver isso. O que restou, de tudo aquilo que aconteceu no século XX, o que  
restou? A palavra que continua a falar dessas coisas, a palavra como memória, também  
mostrando a surdez, a estupidez, a estupidez do homem. O homem é um animal estúpido, mas  
a palavra ligeira é capaz de rir dele. Isso! O riso na palavra. Há a palavra da comicidade. Bakhtin  
referia-se a um certo tipo de palavra, que ao mesmo tempo é um palavrão, uma palavra vulgar,  
é ofensiva, mas que também pode ser usada para exaltar, para elogiar, para louvar. Sim, com o  
palavrão, com a palavra suja: pode ser usada também para louvar uma pessoa. Dou um exemplo:  
- - “Bem, o que você fez, foi fazer a prova? Você tinha me dito que não estava seguro de poder  
fazer bem essa prova, que é um exame difícil, bem, o que você fez?”. - “Sim, sim, eu consegui  
fazer a prova”. - “E o resultado? Você disse que não estava ainda preparado, disse que devia  
rever as últimas páginas do livro. E então, que nota você tirou? - “30 e elogios!”. E aqui, por  
parte do interlocutor, começam os palavrões: “A sua mãe” “os seus mortos … toda a sua  
geração...”, uma série de palavrões, de vulgaridade. E o outro, o que faz? Ri disso, é feliz pelos  
palavrões que recebe. Então, também a palavra vulgar é dupla, é, diz Bakhtin, como o Janus de  
duas faces: pode ofender e elogiar ao mesmo tempo. Bem, também isso indica a grande  
capacidade, o grande poder das palavras. Por isso, eu creio que temos uma grande possibilidade:  
essa possibilidade é o valor da palavra. A palavra pode assumir valor estético: a grande literatura  
o demonstra. Mas, diz Bakhtin, não existe valor estético sem o outro: o eu é esteticamente  
improdutivo. E demonstra isso, sim, também com Dostoiévski, com o romance polifônico de  
14  
Revista Coletivo Cine-Fórum RECOCINE | v. 2 - n. 1 | jan-abr | 2024 | ISSN: 2966-0513 | Goiânia, Goiás  
Dostoiévski. Mas também consegue mostrar isso na poesia lírica. Se chama poesia lírica porque  
o eu é o único a falar, o único a recordar, a relembrar. Mas se não há o outro na sua voz, se não  
há também o ponto de vista do outro, a entonação do outro, não tem valor estético, diz Bakhtin.  
O exemplo com o qual ele demonstra isso é uma poesia de Púchkin, Rázluka, que significa  
adeus, separação6. Aqui há um adeus, há uma separação, ela retorna da Rússia para a Itália, e  
será para sempre essa separação. Mas para narrar essa separação de modo que a narrativa  
assuma valor estético, é preciso não somente a voz de quem escreve: é preciso a voz do outro.  
Deste modo, não “Para as margens de uma terra distante [dele, a Itália] você deixava o solo  
nativo [ainda dele, a Rússia]”; Púchkin corrige: “Para as margens da pátria [dela] distante  
[distância para ambos, uma vez que ela retornou para lá] você deixava o solo estrangeiro [para  
ela]: agora há duas vozes, mas há também uma terceira: a voz dele que agora sabe que o adeus  
é para sempre, porque depois do retorno à Itália ela morreu; mas o “beijo do adeus” negado por  
ela no dia da separação e prometido quando eles se encontrarem na Itália, ele ainda o espera:  
“a tua promessa vale!”. Através da poesia de Púchkin, Rázluka, Bakhtin demonstra o quanto o  
outro é essencial para o valor estético, não há valor moral, mas podemos dizer também que não  
há nenhum tipo de valor sem o envolvimento do outro, sem a referência a ele, sem a escuta  
dirigida a ele. E essa é a grande mensagem que nos dá Bakhtin, essa é a grande confiança que  
devemos ter em nós e em relação aos outros. É assim que o desejo que podemos formular, tu,  
Miotello, e eu, juntos, reciprocamente, “Nós conseguiremos!”, pode tornar-se verdade, realizar-  
se.  
Miotello: Augusto, quando “tomamos a palavra”, é justamente então que a mortificamos,  
porque a queremos possuir, porque não é mais a palavra que está livremente, espontaneamente,  
dentro de nós: a palavra ligeira que “quer sair” em busca de escuta. Mas o problema, e você já  
disse isso, é quando a palavra se enche de mentiras, de fake news, proibindo, reprimindo a  
liberdade da palavra, a palavra ligeira, capaz de voar. Então minha pergunta é: quando tenho a  
palavra, é evidente que essa circula, vai em busca de escuta; mas o que dizer sobre a situação  
em que não a tenho? Quando estou oprimido? Como é possível oferecer uma educação para ter  
essa palavra, para aprender a escutar? Como é possível uma educação para a palavra?  
Augusto: A palavra que pretende impor-se é sempre a de uma minoria. É preciso um grupete,  
é preciso até mesmo um que imponha a própria palavra. Mas, também, há os muitos. A  
educação não é somente aquela que vem da escola. Pode haver um Estado no qual a educação  
6
Mikhail Bakhtin, Lendo Rázluka de Púchkin. a voz do outro na poesia lírica, tr. di Marisol Barenco de Mello;  
Mario Ramos Francismo Júnior; Alan Silus, São Carlos (Brasile), Pedro & João Editores, 2021  
15  
Revista Coletivo Cine-Fórum RECOCINE | v. 2 - n. 1 | jan-abr | 2024 | ISSN: 2966-0513 | Goiânia, Goiás  
 
é a educação de Estado. Portanto, há a palavra que oprime, a palavra que não tolera a outra  
palavra; pode haver uma educação que venha de cima, uma educação para dever ser  
subordinados, para ser passivos, para aceitar, para “escutar” no sentido de obedecer, portanto  
em pleno contraste com a escuta como compreensão respondente. Pode haver uma educação  
nessa direção desejada por alguém, por um, por um grupo, por uma quadrilha. Bakhtin, a  
respeito disso, faz referência não só à ditadura em geral, mas também, dado o seu contexto  
histórico, à ditadura de classes, qualquer que essa seja. Nas “Anotações” dos anos 19507 ele  
escreve: “Se o povo na praça não ri, então o povo cala”. É o calar da compreensão respondente  
que pode se tornar ou não palavra expressa, ou que se reprime, pode manifestar-se nas “formas  
do calar”, como chama Bakhtin, ao que já nos referimos antes (a ironia, a paródia, a alegoria;  
as formas, como ele também diz, do “riso freado”, da “comicidade sutil”).  
O povo não leva nunca ao extremo o pathos de uma verdade dominante. Se um perigo  
ameaça a nação, então o povo cumpre o seu dever e a salva, mas não leva nunca a sério os  
slogan de um estado classista, o seu heroísmo conserva um tom irônico sobre todo o pathos  
da verdade de Estado. Por isso a ideologia de classe não pode nunca penetrar com o seu  
pathos e com a sua seriedade até o coração da alma popular: ela esbarra a um certo ponto  
na barreira, para ela intransponível, da ironia e da alegoria degradante, com a centelha  
carnavalesca (fagulha) da alegre imprecação que destrói toda gravidade. Essa centelha  
carnavalesca da imprecação alegórico e irônica não se extingue nunca no coração do povo,  
é só uma pequena parte da grande chama (incêndio) que arde e renova o mundo (o fogo na  
noite de Ivanóv, a vela do carnaval romano). Elementos desse riso se encontram no  
“corajoso soldado “Ščeveik”8, mas esses aqui se apresentam misturados a um niilismo  
absoluto, estrangeiro, por isso, ao riso rabelaisiano. Muito mais profundo e absoluto ecoa  
esse riso em De Coster9. Esse riso popular alegre e irônico é muito distante do niilismo, da  
seriedade imparcial e da afirmação direta de uma verdade medíocre.  
Mas há a multiplicidade, e a multiplicidade vence. Bakhtin dizia que o povo não suporta por  
muito tempo o domínio de uma verdade imposta. Já a língua é multidão, de palavras, de  
significados, de sentidos. E como a língua é feita de tantas palavras, significados e sentidos,  
cada um diz a sua, se se cada um diz a sua, há o diálogo, e se há o diálogo, há a subversão do  
7
M. Bachtin, “Sei annotazioni”, in Paolo Jachia e A. Ponzio (a cura), Bachtin e… Averincev, Benjamin, Freud,  
ecc. Bari, Laterza, 1993. V. anche A. Ponzio, Tra semiotica e letteratura. Introduzione a Michail Bachtin, Milano,  
Bompiani, 2015; A, Ponzio, La rivoluzione bachtiniana, Bari, Levante Editori, 1997, tr. brasiliana, A revolução  
bakhtiniana, São Paulo, Contexto, 3021; A. Ponzio, No Círculo com Mikhail Bakhtin, São Carlos, Pedro & João  
Editores, 2013.  
8 Le vicende del bravo soldato Švejk (romanzo ceco di Jarosalv Hašek, 1921, 1923; titolo originale: Osudy dobrého  
vojáka Švejka za světové války, letteralmente Le fatidiche (o fatali) avventure del buon soldato Švejk durante la  
guerra mondiale, tr. it. di Giuseppe Diema, illustrazione di Josef Lada, Torino, Einaudi, 2010.  
9 Charles de Coster, La leggenda e le avventure di Thyl Ulenspiegel e di Lamme Goedzak nel paese delle Fiandre  
(La Légende et les aventures héroïques, joyeuses et glorieuses d’Ulenspiegel et de Lamme Goedzak au Pays de  
Flandres et ailleurs, 1867), tr. it di Guglielmo Pennino, Sansoni Editore, 1949.  
16  
Revista Coletivo Cine-Fórum RECOCINE | v. 2 - n. 1 | jan-abr | 2024 | ISSN: 2966-0513 | Goiânia, Goiás  
     
domínio, da imposição, de qualquer cor que essa seja. O povo vence. Bem, a história provou  
que Bakhtin estava certo. Bakhtin viu cair aquele tipo de organização nacional, política, pela  
qual foi mandado para o exílio, um exílio pesado, um exílio de sofrimento. Porém, ele retorna,  
e parafraseando um ditado chinês, podemos dizer que ele viu passar o cadáver de quem lhe foi  
inimigo, estando sobre a margem do rio, de quem havia acreditado poder impor o próprio  
domínio. Assim, esperemos sobre a margem do rio, a palavra vai mostrar que estamos certos.  
A palavra nos dará seus frutos, e esses frutos são de liberação, são expressão de uma visão larga  
das coisas, são sobretudo resultado de encontro. A palavra é encontro. Eu escrevi um livro que  
se chama Encontro de palavras; também escrevi sobre isso um outro que se intitula Em outras  
palavras10. A palavra é sempre outra. Não se consegue impor uma só palavra, porque há sempre  
uma outra palavra dessa, um outro significado, um outro sentido, um outro ponto de vista, e  
isso significa que também as montanhas caem, e a palavra vence. Qual palavra? A palavra  
ligeira. E quais valores? Os valores da obra que Emmanuel Levinas indica como movimento  
em direção à alteridade sem lucro, como acontece sobretudo na obra de arte, na estética, na  
escritura literária que, mesmo como poesia lírica, como vimos, deve colocar-se à escuta da  
palavra outra, deve fazer com que ela ressoe na sua própria. Sem alteridade, nenhuma obra.  
Mais ainda: sem alteridade a identidade se esvazia. Sim, a palavra que não escuta a palavra  
outra pode até durar. Mas quanto pode durar? Miotello, mas quanto pode durar? Nós vamos  
conseguir! Vamos conseguir!  
Miotello: Então, Augusto, penso que esse seja o esforço a se fazer, lutar pela liberdade da  
palavra, para que não seja propriedade de quem domina, de quem possui a TV, de quem controla  
os meios de comunicação de massa, de quem detém o poder sobre os canais de comunicação-  
produção globalizada. A palavra deve ser sem patrão. E se cremos nisso, com toda a esperança  
que nos provém de autores como Bakhtin, assim como tu também nos fala, a esperança  
recolocada na palavra que libera, então sim, podemos crer na liberdade da palavra, na palavra  
livre e que libera. A palavra circulará, terá mais vozes, produzirá a liberação que é necessária  
ao povo. Mas infelizmente vemos constantemente as forças opressivas dominantes conseguirem  
anular as vozes, mentir, tapar seus olhos para nos fazer crer que não se é nada, que você é uma  
coisa, que você é um objeto, e não uma pessoa. Baseado naquilo que você disse sobre a relação  
entre o ser humano e a palavra, podemos dizer que a negação da palavra envolve que o  
desumanizamos, que o embrutecemos. Eis porque a nossa luta pela liberdade da palavra, a  
10 Tr. brasileira Procurando uma palavra outra, 2010; Encontros de palavras (2018), São Carlos, Pedro & João  
Editores.  
17  
Revista Coletivo Cine-Fórum RECOCINE | v. 2 - n. 1 | jan-abr | 2024 | ISSN: 2966-0513 | Goiânia, Goiás  
 
palavra que pode circular livremente, esse é o nosso esforço, isso é o que me agrada escutar  
você repetir, como me agrada escutar Bakhtin. Quando a palavra circula, produz liberação; o  
problema é quando não circula, esse é um problema relevante.  
Augusto: Como disse antes, os muros não conseguem impedir que a palavra passe através deles.  
Está certo, existe a comunicação dominante. Ferruccio Rossi-Landi, um dos meus mestres, dizia  
que a opinião dominante é a da classe dominante, que é a classe que controla a comunicação.  
A comunicação dos mass-media, a comunicação que invade e permeia... Mas também essa  
comunicação tem seus pontos fracos. Estamos aqui justamente falando disso. Eu traduzi  
recentemente para o italiano o livro de Roland Barthes Le Neutre, O Neutro. Está em fase de  
publicação. Bem, Roland Barthes por todo esse livro coloca em discussão a doxa, a opinião  
dominante, a ideologia dominante, a ideológica dominante. Chama-se “ideológica” porque  
parece que seja a lógica das coisas, de tal modo é dominante. Parece que você esteja pensando  
por lógica, mas ao contrário, está pensando por ideológica. É verdade, sim, somos invadidos,  
somos circundados, por todos os lados, o mundo é feito dessa forma neste momento. Até mesmo  
se pensa que para poder resolver o problema da guerra, para evitar a guerra, se deva fazer a  
guerra preventiva. E as pessoas creem nisso. Prevenir é melhor. Façamos, pois, uma guerra  
preventiva, pois assim evitamos a guerra...  
Miotello: A guerra humanitária...!  
Augusto: E as pessoas creem nisso. O que acontece hoje não somente na Europa e nas fronteiras  
da Europa entre a Bielorrússia e a Polônia católica: há imigrantes no meio que servem de muro  
humano e não podem ir nem a uma parte nem à outra, e sofrem fome, frio, morrem. Uma guerra  
feita com a vida das pessoas. As guerras se fazem sempre com as pessoas, com os exércitos,  
exércitos contra exércitos: mas essas são pessoas pobres, que estão morrendo de frio e de fome.  
Se queres a paz, prepara a guerra. Essa é a ideológica dominante sobre a realização da paz.  
Pensemos no acordo atual entre os EUA e a Austrália: O que faremos? O que faremos para a  
paz? Façamos os submarinos atômicos. Onde os colocaremos? Perto da China. Se fazem  
acordos entre um Estado e outro Estado, há sempre um terceiro que deve ser hostilizado. A  
China e a América do Norte estão em posições contrárias entre si, mas se colocam em acordo  
em relação ao Iran. É um exemplo. Essa é a situação atual. Ou isto, ou aquilo. Escolha, não há  
uma alternativa. Bem, Roland Barthes em O Neutro põe em discussão o paradigma. Ou branco  
ou negro, ou comunitário ou extracomunitário, ou com esta identidade, ou sem esta identidade.  
O paradigma: ou…ou…, aut aut… Barthes fala de “desejo de neutro”. Belíssima essa  
expressão: desejar sair do paradigma, querer fugir, frustrar o paradigma. O neutro não é a  
18  
Revista Coletivo Cine-Fórum RECOCINE | v. 2 - n. 1 | jan-abr | 2024 | ISSN: 2966-0513 | Goiânia, Goiás  
neutralidade, cuidado! não é de fato a neutralidade. É colocar fim à doxa, ao preconceito, ao  
paradigma, ao contraste, ao dever escolher. Se eu sou seu amigo não é pela sua identidade,  
Miotello, não me importa nada se você foi um professor, se é professor emérito, “eu sou  
professor emérito!”, não me importa nada. Não me importa nada que seja brasileiro, não me  
importa. Me interessa você, na sua singularidade. E aqui cito novamente Roland Barthes, O  
discurso amoroso, no qual se evidencia que o enamoramento não é um enamoramento de  
identidades. Do contrário falamos de “amor não verdadeiro”, de “falso amor”. E se você diz a  
uma pessoa: “te amo porque você é católica”, “te amo porque você é brasileira”, mesmo se diz  
“te amo porque você é uma mulher”, ela não se agrada e não sabe o que fazer com a sua  
declaração. “Te amo porque você é uma mulher”? Não: “Te amo porque és tu”. Tu, e basta!  
Fora da identidade. As relações de amizade, as relações de amor são fora da identidade, são  
relações por nada. “Por que me amas?” – “Porque és tu”. “E o que quer dizer dizendo que me  
amas?” – “Quero dizer que eu estou aqui por ti; quando me quiseres, eu estarei aqui”. Portanto:  
não “eu sou”, “eu sou professor”, “eu sou italiano”, “eu sou...”  
Miotello: eu, eu, eu...  
Augusto: No amor romântico, fraterno, filial, no amor pelo próximo, na amizade, nas relações  
“verdadeiras”, conta o “estou aqui por você”.  
Miotello: Compreendi bem o que você disse e concordo com você. Mas permanece o problema  
atual, o grande problema de hoje. A identidade é dominante, é soberana, com todas as  
consequências que isso envolve nas relações da alteridade e da identidade. O outro é sempre  
desvalorizado. A consequência é a guerra, a afirmação do poder, a difusão da fome no planeta,  
a migração, fenômeno mundial devido ao fato que não se consegue nem estar no próprio país.  
Por consequência, há a necessidade que, em confronto e no lugar da palavra que afirma o poder,  
que afirma e exalta a identidade, que haja uma palavra de amor, uma palavra que escuta, uma  
palavra que se dispõe ao outro em termos de escuta. Uma palavra dita com amor e que escuta,  
tendo em conta que é com o outro que o eu se constitui. A respeito de tudo isso penso que  
estamos ainda, talvez até mais, em uma situação difícil, e é preciso que uma mudança no sentido  
que estamos dizendo possa acontecer, e rapidamente, uma mudança na palavra de modo que se  
torne palavra amorosa, palavra em relação com o outro, não indiferente ao outro. É isso que  
você está dizendo, quando diz “amorosidade”. Por que uma palavra amorosa? Porque ela  
aceitará todas as nuanças, todas as diferenças, colocando-se em uma posição de não indiferença.  
E isso é fundamental para a possibilidade do vivermos juntos.  
19  
Revista Coletivo Cine-Fórum RECOCINE | v. 2 - n. 1 | jan-abr | 2024 | ISSN: 2966-0513 | Goiânia, Goiás  
Augusto: Sim, uma posição de não indiferença. Não sou indiferente a você. Essa situação é a  
relação de amor. O que podemos dizer? O amor nos salva. A possibilidade do amor é a  
possibilidade da nossa salvação. Parece que estamos dizendo aquilo que dizia, quem? Aquilo  
que dizia Cristo: o amor. É aquilo que diz o Papa Francisco, que fala da globalização da  
indiferença neste mundo. É preciso recuperar as relações em que não sejamos indiferentes.  
Você poderia iniciar uma declaração de amor a uma pessoa começando a dizer assim: “devo te  
dizer que não te sou indiferente”. Esse é o primeiro movimento do amor, sentir não indiferença  
por uma pessoa. Se essa coisa se alarga, se essa coisa se torna um comportamento dominante...  
Mas cuidado! Creio que esse comportamento de não indiferença seja já dominante. Creio que  
esse comportamento de não indiferença seja já vencedor. Não devemos pregar o amor. O amor  
existe. Há tantas pessoas, tantas, que vivem de amor, que vivem pelo amor, que vivem mesmo  
pelo amor dos outros, pelo amor pelos outros e pelo amor por parte dos outros. Essa é a nossa  
vida. Mesmo os migrantes, com seus filhos, os migrantes nos papéis de maridos, de esposas, de  
pais, de filhos, no frio, no gelo me referia antes à gente pobre entre a Bielorrússia e a Polônia,  
rejeitada por uma parte e pela outra do que vivem? O que ainda ali continua a ter vida? Pouco  
pão, pouco calor... O amor; o amor é vencedor.  
Miotello: Para fechar, sublinhamos a importância da palavra para o outro, do dizer uma palavra  
que seja para o outro, por amor a ele, não mais pelo medo do outro, mas pelo medo por ele, pela  
preocupação com ele: esta é a primeira coisa que deveríamos evidenciar como conclusão da  
nossa conversa. Que cada um, portanto, diga a sua palavra, porque a palavra não é para o eu, é  
para os outros, e pertence aos outros, porque vem deles, nós as recebemos dos outros, a palavra  
provém originariamente dos outros, se aprende em relação a dois, escutando, aprendendo a  
escutar. Ter isso em conta me parece fundamental.  
Augusto: A escuta requer a não indiferença. Necessariamente deve haver uma relação de não  
indiferença. Um outro grande autor que faz parte da minha formação, Emmanuel Levinas,  
mostra que o primeiro movimento em direção ao outro é aquele de não indiferença. Eu  
caminhando pela rua vejo uma pessoa caída no chão, o primeiro impulso é o de ajudá-la a  
levantar-se. Se eu vejo na rua uma pessoa que diz “tenho fome”, o primeiro impulso é o de dar-  
lhe algo. Depois há o segundo movimento, o meu conatus essendi, a preocupação por mim  
mesmo. Então, há essa pessoa caída no chão, eu o que faço? Me aproximo e lhe ajudo a levantar-  
se? E se ela tiver alguma doença contagiosa? E se tem o Covid? E por que deveria eu me ocupar  
disso? Chamo a polícia? Chamo a ambulância? Mas quanto tempo vai levar? E já estou  
atrasado. Mas, ao fim, o que eu tenho com isso? E vou embora.  
20  
Revista Coletivo Cine-Fórum RECOCINE | v. 2 - n. 1 | jan-abr | 2024 | ISSN: 2966-0513 | Goiânia, Goiás  
Miotello: É o medo do outro.  
Augusto: E esse é o segundo movimento. Mas o primeiro movimento é de ajuda ao outro. Se  
você vê alguém que está se afogando no mar, esteja você sobre a margem ou também na água,  
você se joga para salvá-lo, ou pelo menos esse é o primeiro impulso; mas se pensar, se refletir  
bem, não o fará, e encontrará muitas razões para não o fazer. Se pensar, dirá: deveria ir um  
salva-vidas, uma equipe de socorro, para salvá-lo? Por que devo eu ir? E se depois ele me puxa  
para baixo tentando se agarrar a mim? Bem, Miotello, eu posso me gabar de ter salvo uma  
pessoa que se afogava. Venceu a minha parte de não indiferença sobre a identidade, porque se  
prevalecesse a identidade, teria dito: o que tenho com isso? Mas por que deveria fazer isso,  
correr esse risco? Que fosse outro qualquer, um salva-vidas! Fui eu a ir. E disso me orgulho. E  
se eu sou capaz disso, creio que também tu, também um outro, que também um outro ainda  
pode fazê-lo, pode ser capaz.  
Miotello: Me fez lembrar de Moisés, que, quando Deus o chamou para que fosse salvar seu  
povo, disse: “Mas por que eu? Nem ao menos sei falar bem. Manda outro qualquer no meu  
lugar”.  
Augusto: Há também nesse episódio aquilo que aqui é muito pertinente a respeito da relação  
eu-outro. Moisés diz: “Está bem, está bem, eu vou. Mas quando me perguntarem quem me  
mandou, como devo dizer? Tu, quem és?”. E, como dizem as traduções das escrituras, o Padre  
Eterno haveria respondido, “Eu sou o Ser enquanto Ser”. E, portanto, Moisés deveria dizer:  
“Bom dia, me envia o Ser enquanto Ser para dizer …”. A outra resposta, no “Arbusto Ardente”,  
a respeito de “Padre Eterno, mas eu, como devo dizer?” é: “Eu sou aquele que sou”. “Bom dia,  
o Eu-sou-aquele-que-sou me manda para dizer …”. Como terá dito o Padre Eterno a Moisés?  
Talvez mais ou menos assim: “Quando te perguntarem quem te manda, deves dizer que eu sou  
aquele que está aqui por ti, que, quando me querem, eu estou ali; que, quando tu me queres,  
estou a seu lado. Mas isso pode acontecer também em uma declaração de amor. Miotello, se  
estás fazendo uma declaração do teu afeto, da tua disponibilidade para uma pessoa, e essa  
pessoa diz: “Mas tu, quem és? Quem queres ser para mim?” E tu respondes: “Eu sou aquele  
que, quando me quiseres, estarei aqui. Eu estou a teu lado. Eu estou contigo”. Uma bela  
resposta. Uma resposta que é melhor que qualquer declaração de amor, de amizade, de não  
indiferença. Portanto, não “eu sou”, mas “eu estou aqui”.  
Miotello: Agradeço a você e a todos aqueles que nos escutam e leem.  
Augusto: Nos encontraremos de novo, não termina aqui nossa conversa.  
21  
Revista Coletivo Cine-Fórum RECOCINE | v. 2 - n. 1 | jan-abr | 2024 | ISSN: 2966-0513 | Goiânia, Goiás