Revista Coletivo Cine-Fórum RECOCINE  
UM MUNDO EM QUE UM ZUMBAYLLU CANTA AOS  
VENTOS É POSSÍVEL: OS DESDOBRAMENTOS DE  
ERNESTO EM SI MESMO COMO MEDIAÇÃO PARA  
O DIÁLOGO ENTRE ANTROPOLOGIA E  
LITERATURA  
Iuri da Silva Gomes *  
RESUMO  
Este ensaio, resultado de uma disciplina cursada no segundo semestre do ano de 2022, em um  
programa de pós-graduação em Antropologia Social da Universidade de São Paulo, visa reciclar  
os debates suscitados em aulas voltadas para o explorar da relação entre antropologia e  
literatura. Com o objetivo de analisar a obra Os Rios Profundos, de José Maria Arguedas, este  
texto centraliza a figura do personagem Ernesto para localizar as aproximações e os  
distanciamentos entre as referidas ciências. À guisa de explanação, este ensaio encontra-se  
organizado da seguinte maneira: 1) algumas reflexões sobre a relação antropologia e literatura  
a partir de textos como O conceito de ficção (2009), de Juan José Saer e Literatura como  
antropologia especulativa (2015), de Alexandre Nodari; 2) a apresentação do romance Os Rios  
Profundos (2005), de José Maria Arguedas, com foco em algumas das experiências do  
personagem principal Ernesto, notando os conflitos de pressupostos pelos quais ele atravessa;  
3) e, por fim, uma discussão acerca dos zumbayllu, uma leitura que os visualize como artefatos  
de resistência em tempos sombrios, em diálogo com textos como Un mundo ch’ixi es posible  
(2018), de Silvia Cusicanqui, Pode o subalterno falar? (2010), de Gayatri Spivak, e As  
existências mínimas (2017), de David Lapoujade. Os resultados deste ensaio apontam que o  
explorar da relação entre antropologia e literatura viabiliza o forjar de um acervo teórico e  
reflexivo sobre a presença de ontologias outras em textos literários verdadeiros tratados  
sociológicos, que falam a gerações e rompem com posturas reducionistas.  
Palavras-chaves: Literatura e antropologia. Ontologias ameríndias. Literaturas hispânicas.  
*
Mestrando em Letras Estudos Linguísticos e Literários em Inglês pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências  
Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP). Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado  
de São Paulo (FAPESP). Orientando da Profa. Dra. Laura Patricia Zuntini de Izarra, Profa. Titular da Universidade  
de São Paulo.  
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RECOCINE, v. 1. n. 3 | set-dez | 2023 | Goiânia, Goiás  
 
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A WORLD IN WHICH A ZUMBAYLLU SINGS TO THE WINDS IS  
POSSIBLE: ERNESTO'S DEVELOPMENTS IN HIMSELF AS  
MEDIATION FOR THE DIALOGUE BETWEEN  
ANTHROPOLOGY AND LITERATURE  
Iuri da Silva Gomes *  
ABSTRACT  
This essay, the result of a course taken in the second semester of 2022, in a postgraduate  
program in Social Anthropology at the University of São Paulo, aims to recycle the debates  
raised in classes aimed at exploring the relationship between anthropology and literature. With  
the aim of analyzing the work Os Rios Profundos, by José Maria Arguedas, this text centers the  
figure of the character Ernesto to locate the similarities and distances between the  
aforementioned sciences. By way of explanation, this essay is organized as follows: 1) some  
reflections on the relationship between anthropology and literature based on texts such as The  
concept of fiction (2009), by Juan José Saer and Literature as speculative anthropology (2015)  
, by Alexandre Nodari; 2) the presentation of the novel Os Rios Profundos (2005), by José  
Maria Arguedas, focusing on some of the experiences of the main character Ernesto, noting the  
conflicts of assumptions he goes through; 3) and, finally, a discussion about the zumbayllu, a  
reading that views them as artifacts of resistance in dark times, in dialogue with texts such as  
Un mundo ch'ixi es posible (2018), by Silvia Cusicanqui, Pode o subalterno fala ? (2010), by  
Gayatri Spivak, and Minimal Existences (2017), by David Lapoujade. The results of this essay  
indicate that exploring the relationship between anthropology and literature makes it possible  
to forge a theoretical and reflective collection on the presence of other ontologies in literary  
texts true sociological treatises, which speak to generations and break with reductionist  
stances.  
Keywords: Literature and anthropology. Amerindian ontologies. Hispanic literatures.  
.
* Master's student in Letters - Linguistic and Literary Studies in English at the Faculty of Philosophy, Letters and  
Human Sciences of the University of São Paulo (FFLCH/USP). Fellow of the São Paulo Research Foundation  
(FAPESP). Advised by Prof. Dr. Laura Patricia Zuntini de Izarra, Full Professor at the University of São Paulo.  
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INTRODUÇÃO  
Na tentativa de explorar os diálogos realizados na disciplina “Antropologia e Literatura:  
trânsitos e contaminações”, vinculada ao Programa de Pós-graduação em Antropologia Social  
da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo  
(FFLCH/USP), ministrada pelo Prof. Dr. Pedro de Niemeyer Cesarino no segundo semestre do  
ano de 2022, este texto, que é também uma culminância de parte do que foi trabalhado em suas  
aulas, tem como objetivo refletir sobre os “trânsitos e as contaminações” entre antropologia e  
literatura. Para atingir esse intento, o personagem Ernesto do romance Os Rios Profundos  
(2005), de José Maria Arguedas, servirá como leitmovit para a elaboração discursiva aqui  
desejada, dada a relevância de seus deslocamentos, experiências vividas e memórias  
agenciadoras de existências outras em um cenário complexo, em um verdadeiro “espaço da  
dor” (DELCASTANGÉ, 1996).  
Sem a intenção de esgotar o debate, busco tecer reflexões que destaquem a contribuição  
da aproximação de diferentes áreas do conhecimento para o questionamento de problemas  
contemporâneos. Interessa-me, sobretudo, investigar Ernesto e seus artifícios subjetivos  
enquanto agências (de)enunciadoras de modos de existência, e para além dessas incursões  
subjetivas irei me valer, também, da potencialização que o personagem realiza de objetos e  
“coisas”. Penso, por fim, que tal propósito, o de entranhar-se nas profundezas humanas e não  
humanas, e delas extrair lições para a construção de um modelo civilizatório outro, atravessa  
tanto uma antropologia como uma literatura engajadas com a valorização dos “regimes de  
pensamento” dos vencidos, e é por visualizar isso em Ernesto que pretendo iniciar a travessia  
desse rio, mesmo sem ter a certeza de que chegarei em terras firmes ao término que também  
é um começo dessa empreitada.  
À guisa de explanação, este ensaio possui uma estrutura que visa fazer jus à beleza do  
romance objeto deste estudo, como também ao tratamento científico e sólido que determinados  
textos dão à relação antropologia e literatura. Assim, apresento 1) algumas reflexões sobre a  
relação antropologia e literatura a partir de textos como O conceito de ficção (2009), de Juan  
José Saer e Literatura como antropologia especulativa (2015), de Alexandre Nodari; 2) a  
apresentação do romance Os Rios Profundos (2005), de José Maria Arguedas, com foco em  
algumas das experiências do personagem principal Ernesto, notando os conflitos de  
pressupostos pelos quais ele atravessa; ainda com foco na elaboração reflexiva desse segundo  
momento, os textos de Marcos Natali, José María Arguedas Aquém da Literatura (2005) e  
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Aspectos elementares da insurgência indígena: notas em torno de Os Rios Profundos (2018),  
também servirão como sustentáculos para a reflexões tecidas sobre o romance; 3) e, por fim,  
uma discussão acerca dos zumbayllu, uma leitura que os visualize como artefatos de resistência  
em tempos sombrios, em diálogo com textos como Un mundo ch’ixi es posible (2018), de Silvia  
Cusicanqui do qual inclusive inspiro-me para a confecção do título deste texto , Pode o  
subalterno falar? (2010), de Gayatri Spivak, e As existências mínimas (2017), de David  
Lapoujade; entre outros.  
ANTROPOLOGIA E LITERATURA: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL  
Os textos mobilizados para a reflexão sobre antropologia e literatura assinalam ambos  
“o caráter duplo da ficção, que mescla, de um modo inevitável, o empírico e o imaginário”  
(SAER, 2009, p. 02). Como lembra Nodari (2015) em sua leitura de Milan Kundera, “está em  
jogo na ficção a exploração de um território novo da existência por meio de “egos imaginários”,  
alter-egos” (NODARI, 2015, p. 81), e prossegue ressaltando que o romance não examina a  
realidade, mas sim a existência. A existência não é o que aconteceu, a existência é o campo das  
possibilidades humanas, tudo aquilo que o homem pode tornar-se, tudo aquilo de que é capaz  
(KUNDERA, 2009, p. 46 apud NODARI, 2015, p. 81).  
Pensar a ficção como o território do vir a ser é valorizar o imaginário e suas  
possibilidades de nutrir o mundo real com alternativas outras para as relações sociais. Ao passo  
que a antropologia “cartografa mundos possíveis, constituindo uma cosmografia comparada das  
perspectivas do anthropos, aquilo que a literatura cartografa são mundos inexistentes, sendo  
uma cosmografia comparada das perspectivas extra-mundanas” (NODARI, 2015, p. 81, grifos  
do autor).  
Vimos que Nodari localiza e delimita a relação da antropologia frente a literatura: a  
primeira cartografa os mundos possíveis e a última os mundos inexistentes. Interessante notar  
que, embora não mapeie o existente, e sim o inexistente, o que a literatura realiza, como pontua  
Nodari, é ainda assim uma cartografia, ou seja, a inscrição e a representação de um determinado  
projeto que fala ao social e ao cultural, e que reivindica um olhar atencioso para as trocas e os  
conflitos de ordem humanas.  
Como lembra Saer (2009, p. 02), “ao dar o salto em direção ao inverificável, a ficção  
multiplica ao infinito as possibilidades de tratamento” de uma determinada situação, e não se  
traduz por isso como uma “exposição romanceada de tal ou qual ideologia, mas um tratamento  
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específico do mundo, inseparável do que trata” (SAER, 2009, p. 02), daí a proposição de Saer  
de identificar a ficção como uma antropologia especulativa; pois, especula-se sobre e a respeito  
do inexistente, sem a intenção de anulá-lo ou de elevá-lo ao estatuto da verdade, mas sim  
mostrar que “não só um outro mundo é possível – como também um outro possível é mundo”  
(NODARI, 2015, p. 83).  
Veremos que a leitura de Os Rios Profundos à luz da relação antropologia e literatura,  
dos encontros e trocas entre o possível o impossível, e dado o contexto histórico que atravessa  
o romance, convoca os leitores e os projetos culturais vigentes a uma desarticulação de  
pressupostos ontológicos reducionistas, e o faz sem deixar de ser literatura, o que é válido  
ressaltar.  
OS RIOS PROFUNDOS: ONTOLOGIAS OUTRAS E RESISTÊNCIA  
Publicado em 1958, Los Ríos Profundos é uma obra que apresenta um contexto de  
dominação cultural dos espanhóis frente a uma comunidade local, representada no texto de  
Arguedas pelos quéchua. O romance parte dos andes peruanos para representar os (des)feitos  
da colonização na vida dos povos locais. Trata-se de uma narrativa que descortina o cenário  
violento elaborado pela lógica dominador versus dominado. O texto de Arguedas apresenta o  
processo de transculturação no âmbito peruano em particular e das Américas em geral  
(BAPTISTA, 2005). De acordo com Rama (2001, p. 23), “a transculturação é o processo de  
desarraigamento das culturas tradicionais”, ou seja, trata-se de uma atividade que dá fim a algo,  
e que tenta extirpar modelos civilizatórios a partir de uma dominação linguística, cultural,  
religiosa, dos hábitos e dos costumes tradicionais.  
O romance apresenta o processo de amadurecimento de Ernesto, um menino de 14 anos  
que se vê frente às injustiças do mundo adulto do qual faz parte. A história começa em Cusco,  
onde Ernesto e seu pai Gabriel chegam. Gabriel, um advogado itinerante, procura um parente  
rico chamado O Velho, para pedir trabalho e abrigo O Velho, a busca por ele, é o que dá início  
ao romance. Mas Gabriel não consegue. Ele então recomeça suas andanças por muitas cidades  
e vilas do sul do Peru. Em Abancay, Ernesto é matriculado como interno em uma escola  
religiosa, enquanto seu pai continua suas viagens em busca de trabalho.  
Ernesto passa a viver com os alunos internos, que são um microcosmo da sociedade  
peruana na qual convivem jovens mestiços, indígenas, espanhóis, filhos de fazendeiros e gente  
da comunidade , e essa vivência é pautada por comportamentos cruéis, violentos, que parecem  
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ser a norma para a convivência no local. Adiante, e fora dos limites da escola, um grupo de  
chicheras3 se amotina, exigindo a distribuição de sal, e uma massa de camponeses indígenas  
entra na cidade para pedir uma missa pelas vítimas do tifo epidêmico, que se deu no vilarejo.  
Isso leva Ernesto a uma crise profunda de consciência, pois ele se vê frente a caminhos  
ambíguos, mundos cindidos, nos quais seus pressupostos são provocados: ou o personagem se  
guia pelos valores de libertação do povo oprimido ou compactua com o regime de violência  
vigente.  
Ernesto se singulariza enquanto personagem à medida em que suas ações destoam do  
coro violento expressado pelos demais colegas e padres da escola religiosa. O personagem, por  
exemplo, é açoitado por ter escolhido um lado na revolta das chicheras, o lado dos vencidos:  
“O padre diretor me levou até a capela do Colégio. Diante do pequeno altar enfeitado com flores  
artificiais, açoitou-me” (ARGUEDAS, 2005, p. 148). O romance termina quando Ernesto deixa  
Abancay e vai para uma fazenda de propriedade de “El Viejo”, situada no vale do Apurímac,  
aguardando o retorno de seu pai.  
Ernesto é um personagem que apresenta desdobramentos de ordem subjetiva, moral,  
cultural, e suas experiências são dolorosas, pois a sociedade com a qual interage está  
corrompida por um discurso e práticas vexatórias para com o outro, com a cultura alheia, a  
cultura dos indígenas e suas ontologias. Trata-se de uma figura híbrida, um menino branco,  
filho de espanhol, matriculado em um colégio religioso, de ordem colonial, angustiado pelas  
violências que presencia e pelo fato de não se encaixar nesse mundo dividido em  
compartimentos a natureza, digamos, do mundo colonial, como já lembrava Frantz Fanon  
(1968, p. 27). Natali (2018, p. 243) lembra que a obra de Arguedas “deve ser lida como um  
longo e angustiado experimento de procedimentos para lidar com o conflito linguístico e  
cultural”, e Ernesto carrega essa angústia, o que o faz questionar, por exemplo, a natureza de  
sua gente e humanidade: “O quê, o que é, afinal, a gente?” (ARGUEDAS, p. 247). Essa  
pergunta é atravessada por um espanto, e se traduz como um chamamento para a elaboração de  
um pensamento crítico-reflexivo acerca das escolhas e rumos de sua sociedade.  
Natali (2018, p. 08), recuperando a contribuição do crítico Ángel Rama, destaca que no  
interior do romance há três vozes narrativas: “Ernesto adolescente, com 14 anos, testemunha  
dos acontecimentos; Ernesto adulto, recordando o período do colégio interno; e um terceiro  
3 Mulheres indígenas que produzem a bebida “chicha”, bebida dos tempos pré-colombianos.  
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narrador, que com a voz de um antropólogo explica e traduz o sentido das experiências  
formadoras”. O adolescente de 14 anos, testemunha dos acontecimentos, elabora sua visão  
sobre o mundo a partir do choque cultural, e desenha uma resistência que se vincula aos  
postulados poético-sensíveis de uma resistência indígena, dado o seu convívio, quando das  
andanças do pai pelos Andes, com indígenas da região.  
O Ernesto adulto, que recupera os eventos do colégio, enfatiza a violência dessa  
instituição, a lógica católica ali vigente, sua corrosão interna e artificialidade como as flores  
do altar, artificiais, que o personagem evidenciou em trecho já citado. O terceiro narrador, a  
voz do antropólogo, está no romance como um mediador das vivências das personagens. Trata-  
se de uma voz que explica artefatos culturais, que cartografa uma região e nela identifica  
culturas autênticas e modelos civilizatórios, são vozes que mostram que “há infinitas formas de  
organizar valores e normas culturais” (MONTERO, 1991, p. 117), contrapondo-se, assim, a  
ideias únicas e totalitárias.  
OS ZUMBAYLLUS: MENSAGEIROS ENTRE DOIS MUNDOS  
O jovem Ernesto, em um de seus testemunhos presente no capítulo de nome “Quebrada  
funda”, parte essa que inicia com a narração do açoite do menino pelo padre, em decorrência  
do jovem ter se filiado à revolta das chícheras, interage com o zumbayllu - nome para pião na  
linguagem inca. O primeiro contato de Ernesto com um zumbayllu é apresentado no capítulo  
de mesmo nome, o sexto capítulo do romance, e foi durante o recreio do internato. Ernesto fica  
compenetrado ao ver um zumbayllu pela primeira vez: “O canto do zumbayllu penetrava no  
ouvido, avivava na memória a imagem dos rios, das árvores pretas que pendem das paredes dos  
abismos” (ARGUEDAS, 2005, p. 94).  
Ao ver a reação de Antero, apelidado de Markask’a, seu amigo de colégio e externo,  
Ernesto projeta um sentimento de dúvidas: “Olhei para o rosto de Antero. Nenhum menino  
contempla um brinquedo desse jeito” (ARGUEDAS, 2005, p. 94). Antero potencializa com seu  
olhar alguma característica ou magia dos zumbayllu que Ernesto até então não havia  
experienciado, e prossegue: “Que semelhança havia, que corrente, entro o mundo dos vales  
profundos e o corpo desse pequeno brinquedo imóvel, quase proteico, que escavava, cantando,  
a areia na qual o sol parecia dissolvido? (ARGUEDAS, 2005, p. 94).  
Ernesto, por perceber com admirável perspicácia as nuances desse mundo cindido, cujas  
sombras ele percebe excessivamente (ARGUEDAS, 2005, p. 312), elenca uma série de  
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perguntas a respeito do zumbayllu, que fogem aos ditames coloniais operantes daquela  
sociedade, e que vão de encontro ao tratamento que pretendo dar ao texto daqui em diante. O  
personagem interroga se há uma semelhança do objeto a sua frente com o mundo dos vales  
profundos, com a terra que ele habita e preenche de sentidos. Sem a intenção de buscar uma  
resposta, parto para possíveis reflexões que podem surgir dos questionamentos de Ernesto. Ao  
interrogar aquele pequeno brinquedo imóvel, suas possíveis confluências com a terra em que  
pisa, o personagem já o eleva a um nível de compreensão sofisticado, e já não mais o trata como  
um mero brinquedo, e sim como algo que fala aos seus, que, ao levantar a poeira do solo em  
que gira, traz e leva mensagens, articula ausências e presenças.  
Figura 1 Jogando pião  
Fonte: Jogando Pião (2007), de Julio Cesar Brigatto Julio  
O contato de Ernesto com o zumbayllu é mediado por Markask’a, que o oferece um:  
“Este é uma mistura de anjo com bruxos – disse. Layk’a por seu fogo e winku por sua forma,  
diabos [...]” (ARGUEDAS, 2005, p. 160). Ernesto guarda-o em seu bolso e diz: “Examinei-o  
devagar com os dedos. Era um winku de verdade, ou seja, disforme, sem deixar de ser redondo;  
e layk’a, ou seja, bruxo, porque avermelhado com manchas difusas” (ARGUEDAS, 2005, p.  
160). Após o desvendar das características do zumbayllu, Ernesto pergunta a Markask’a: “Se  
eu o fizer dançar, e soprar seu canto na direção de Chalhuanca, será que ele chega aos ouvidos  
de meu pai?” (ARGUEDAS, 2005, p. 160). Markask’a diz que sim, pois para o zumbayllu não  
existe distância. Ernesto, então, ensaia o bailar do brinquedo, coloca seus lábios sobre um de  
seus olhos e diz: “Diga a meu pai que estou resistindo bem; embora meu coração se assuste,  
estou resistindo. E você lhe dará seu ar na testa. Cantará para sua alma. Puxei o cordel”  
(ARGUEDAS, 2005, p. 160).  
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Esse trecho é revelador da elaboração de uma agência de resistência frente a um cenário  
complexo, e de conflitos de pressupostos. O zumbayllu, a partir desse momento, recebe uma  
identidade, trata-se de um veículo de afetividade a mensagem de Ernesto para o pai distante  
e um artifício contra hegemônico no sentido de que produz uma rota alternativa aos  
sofrimentos e distâncias, às dores e violências. Esse objeto, que é uma coisa, guarda sua  
singularidade e se inscreve na vida dos personagens que o utilizam como um canal para o  
compartilhamento do sentimento e ações de resistência, como um “amuleto”, algo mágico, um  
ser transcendente. Trata-se de uma “existência mínima”, mas que cujo giros e características  
guardam significados insurgentes.  
Para Lapoujade (2017, p. 32), “para ser coisa, uma existência deve estar ligada a outras  
e formar com elas uma unidade sistemática, compor uma história que as ligue em um cosmos  
definido”. Tal é caso do zumbayllu: “A terminação quéchua yllu é uma onomatopeia. Yllu  
representa, numa de suas formas, a música que produzem as pequenas asas em voo; música que  
surge do movimento de objetos leves (ARGUEDAS, 2005, p. 88). E o cosmos definido dessa  
coisa é o seu caráter de resistência, pois, como lembra Markask’a a Ernesto: “ [...] um canto  
não se queima nem se congela” (ARGUEDAS, 2005, p. 161). Atuar nesse cenário opressor a  
partir da interação com o zumbayllu é habitar a crise de forma produtiva (CUSICANQUI, 2018,  
p. 113).  
O título deste ensaio advém de um paralelo feito com o texto Un mundo ch’ixi es posible  
(2018), da socióloga boliviana Silvia Rivera Cusicanqui. A ideia de “mundo ch’ixi” é uma  
referência às reflexões que em língua aymara se faz sobre o abigarrado, um termo que define  
superfícies em que partes de distintas cores negras e brancas, por exemplo são  
reconhecíveis, de perto, mas que, à distância, parecem de um cinza homogêneo; assim,  
visualizamos o conceito pensando, por exemplo, em elementos como granito ou a pele de  
animais malhados (PIMENTEL, 2018). “O mundo ch’ixi” é aquele território atravessado por  
realidades diferentes, leia-se culturas e modos de existência, e que convivem lado a lado.  
Todavia, a valorização dos diferentes não é um caminho dado, ele precisa ser construído.  
“Um mundo em que um zumbayllu canta aos ventos é possível” parte da compreensão  
de que “[…] es necesario retomar el paradigma epistemológico indígena, una epistemología en  
la que los seres animados o inanimados son sujetos, tan sujetos como los humanos, aunque  
sujetos de muy otra naturaliza” (CUSICANQUI, 2018, p. 90). Ou seja, trata-se de uma  
“reivindicação do voltar”, do voltar até às culturas originárias e recuperar epistemologias para  
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um bem viver. Um mundo em que um zumbayllu canta seria um mundo em que a beleza, o  
encanto, o poético e o sobrenatural formam um sustentáculo para que as sociedades possam  
articular suas vivências. Essa coisa de “existência mínima”, o zumbayllu, esse ser subalterno  
pode, sim, falar. Ernesto, ao questionar o zumbayllu antes de um contato mais próximo, realiza  
aquilo que Cusicanqui acredita ser vital, também, para a mudança de paradigmas: “Tenemos  
que hacer de todo aquello que miramos, que vivimos, una materia para el pensamento”  
(CUSICANQUI, 2018, p. 88).  
O romance Os Rios Profundos, para além da apresentação do zumbayllu como um  
dispositivo de resistência, oferece outros caminhos para essa mesma leitura aqui realizada, dada  
a complexidade no melhor sentido que essa palavra possa ter de suas personagens, ações  
narrativas e estrutura da obra. Todavia, por uma questão de espaço e delimitação do tema,  
optou-se por ensaiar algumas reflexões em torno desse “brinquedo-coisa” e de suas  
potencialidades subversivas a partir dos desdobramentos do personagem Ernesto, esse menino  
que é a síntese de uma crise de identidade que atravessou os peruanos, e quiçá o próprio  
Arguedas, mas que ainda nessa crise aponta para caminhos saudáveis de troca cultural, e de  
busca por um bem-viver.  
CONSIDERAÇÕES FINAIS  
Este texto teve como objetivo, a partir das vivências do personagem Ernesto, contribuir  
para as discussões acerca dos trânsitos e contaminações entre antropologia e literatura. As  
experiências desse personagem, reveladas através de suas memórias, apresentam uma  
personalidade em formação, uma subjetividade sendo elaborada frente a situações conflituosas.  
Ernesto, a despeito de seu histórico familiar e geográfico, de sua formação no internato  
católico, revela-se um sujeito aberto a possibilidades de se pensar e agir de outra maneira, que  
não a alimentada por inimigos e discursos colonizantes. Para além disso, é louvável destacar a  
presença de personagens indígenas do sexo feminino na narrativa, e suas representações como  
verdadeiras revolucionárias tema esse que, infelizmente, não tive tempo de desenvolver.  
Por fim, encaminho o texto recuperando uma de minhas promessas: a de atar parte dos  
pensamentos aqui lançados com os problemas contemporâneos da sociedade brasileira. É  
inegável que uma profunda crise circulou e atravessou a nossa realidade, e que comunidades  
originárias tiveram seus direitos vilipendiados.  
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Ler e escrever sobre Os Rios Profundos, notar a presença das ontologias indígenas e a  
sua desvalorização pelo viés ocidentalocêntrico e por políticas da morte, é um exercício-  
protesto, é uma escrita atravessada por memórias e sentimentos de revolta de casos  
contemporâneos de ataque a essas culturas e de violação aos direitos humanos; é, sobretudo,  
adentrar os rios profundos de nossas histórias e dentro deles reinvidicar um outro modelo  
civilizatório aquele em que um zumbayllu possa cantar.  
AGRADECIMENTOS  
Ao professor Pedro Cesarino pelas contribuições substantivas em aula, e claro, pela  
qualidade na condução da disciplina. Axé Muntu. Vida boa hoje e sempre!  
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REFERÊNCIAS  
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Companhia das Letras, 2005.  
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade: Estudos de Teoria e História Literária. 8. ed.  
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CUSICANQUI, Silvia Rivera. Un mundo ch’ixi es posible. Buenos Aires: Tinta Limón, 2018.  
DALCASTAGNÈ, Regina. O espaço da dor: o regime de 64 no romance brasileiro. Editora  
UnB, 1996.  
FANON, Frantz. Os condenados da terra. São Paulo: Civilização Brasileira, 1968.  
JULIO, JULIO CESAR BRIGATTO. Jogando Pião. Original de arte, pintura, 50 X 60 cm.  
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LAPOUJADE, David. As existências mínimas. São Paulo, N-1, 2017.  
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NATALI, Marcos. José María Arguedas aquém da literatura. Estudos Avançados 19 (55),  
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NODARI, Alexandre. A literatura como antropologia especulativa. Revista da ANPOLL,  
2015.  
SAER, Juan José. O conceito de ficção. Sopro 15, p.. 1-4, 2009.  
SPIVAK, Gayatri. Pode o subalterno falar?. Belo Horizonte, Editora da UFMG, 2010  
**Este trabalho foi originalmente publicado no livro Diálogos  
Científicos(2023), da Editora Coletivo Cine-Fórum,  
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RECOCINE, v. 1. n. 3 | set-dez | 2023 | Goiânia, Goiás