Revista Coletivo Cine-Fórum – RECOCINE
narrador, que com a voz de um antropólogo explica e traduz o sentido das experiências
formadoras”. O adolescente de 14 anos, testemunha dos acontecimentos, elabora sua visão
sobre o mundo a partir do choque cultural, e desenha uma resistência que se vincula aos
postulados poético-sensíveis de uma resistência indígena, dado o seu convívio, quando das
andanças do pai pelos Andes, com indígenas da região.
O Ernesto adulto, que recupera os eventos do colégio, enfatiza a violência dessa
instituição, a lógica católica ali vigente, sua corrosão interna e artificialidade – como as flores
do altar, artificiais, que o personagem evidenciou em trecho já citado. O terceiro narrador, a
voz do antropólogo, está no romance como um mediador das vivências das personagens. Trata-
se de uma voz que explica artefatos culturais, que cartografa uma região e nela identifica
culturas autênticas e modelos civilizatórios, são vozes que mostram que “há infinitas formas de
organizar valores e normas culturais” (MONTERO, 1991, p. 117), contrapondo-se, assim, a
ideias únicas e totalitárias.
OS ZUMBAYLLUS: MENSAGEIROS ENTRE DOIS MUNDOS
O jovem Ernesto, em um de seus testemunhos presente no capítulo de nome “Quebrada
funda”, parte essa que inicia com a narração do açoite do menino pelo padre, em decorrência
do jovem ter se filiado à revolta das chícheras, interage com o zumbayllu - nome para pião na
linguagem inca. O primeiro contato de Ernesto com um zumbayllu é apresentado no capítulo
de mesmo nome, o sexto capítulo do romance, e foi durante o recreio do internato. Ernesto fica
compenetrado ao ver um zumbayllu pela primeira vez: “O canto do zumbayllu penetrava no
ouvido, avivava na memória a imagem dos rios, das árvores pretas que pendem das paredes dos
abismos” (ARGUEDAS, 2005, p. 94).
Ao ver a reação de Antero, apelidado de Markask’a, seu amigo de colégio e externo,
Ernesto projeta um sentimento de dúvidas: “Olhei para o rosto de Antero. Nenhum menino
contempla um brinquedo desse jeito” (ARGUEDAS, 2005, p. 94). Antero potencializa com seu
olhar alguma característica ou magia dos zumbayllu que Ernesto até então não havia
experienciado, e prossegue: “Que semelhança havia, que corrente, entro o mundo dos vales
profundos e o corpo desse pequeno brinquedo imóvel, quase proteico, que escavava, cantando,
a areia na qual o sol parecia dissolvido? (ARGUEDAS, 2005, p. 94).
Ernesto, por perceber com admirável perspicácia as nuances desse mundo cindido, cujas
sombras ele percebe excessivamente (ARGUEDAS, 2005, p. 312), elenca uma série de
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RECOCINE, v. 1. n. 3 | set-dez | 2023 | Goiânia, Goiás