combater a doença. "Com os conhecimentos da época, os médicos da antiga Atenas estavam
despreparados para erradicar a epidemia de cólera" (Sennet, p. 87, 2021). O mal atingiu de
maneira fatal a estrutura social da cidade, mudando o curso dos rituais e celebrações rotineiras,
bem como rompeu com as barreiras hierárquicas do Estado, uma vez que a doença não
distinguia cidadão de não-cidadão, ateniense de escravos, ou mesmo homens de mulheres.
O que o autor de Carne e Pedra contra sobre a história de Atenas é o que se consegue
comparar com a chegada de diversas outras doenças. A aids, por exemplo, por muito tempo foi
vista como castigo divino e algo associado aos corpos homossexuais. Cria-se uma cultura de
individualismo, porque ignorar a presença e a existência do outro era visto como prevenção
contra o vírus HIV. Da mesma forma, foram anos de pesquisa até que pudéssemos entender as
transmissões, perceber que uma doença não enxerga classe social ou orientação sexual e
trabalhar em um processo de tratamento mais adequado (Macedo, 2020).
A ideia de corpos cívicos impuros, que podemos associar com a aids e os corpos
homossexuais, também ocorreu com os judeus na Itália do século XV e XVI. Sennett (2021)
conta que o corpo judeu era associado à epidemia de sífilis que assolava Veneza justificado na
sensualidade. Como diz Sennett:
O ataque veneziano contra os judeus estava associado a essa reação contra a
sensualidade corporal [...] Se tocar um judeu equivalia a contrair uma infecção
de natureza sexual - a partir do momento em que o senso comum associou-os
à disseminação da sífilis -, doutores da mesma origem racional estavam
proibidos de tratar a doença (p. 232, 233).
Na mesma parte do livro, Sennett explica que os corpos judeus pareciam abrigar uma
"miríade de doenças decorrentes das práticas religiosas" (p. 231). Essa associação de corpos e
doenças conversa com o que diz a pesquisadora americana, Susan Sontag, que afirma nada ser
mais punitivo do que dar sentido às doenças. Uma vez cruel toda doença ou casualidade
tenebrosa que o tratamento seja ineficaz, ser saturada de significação (Sontag, 2007 p.52).
A associação de doenças com corpos é vista também quando falamos da pandemia do
coronavírus, tema deste texto. O preconceito contra pessoas asiáticas cresceu a partir da Covid-
19. Foram registradas postagens ofensivas, agressões em locais públicos e ainda as declarações
do então ministro da Educação, Abraham Weintraub, que afirmou que a China sairia
prevalecida da pandemia enquanto imitava um sotaque asiático (Torres, 2021).
Estudar Sennett nos mostra como muitas questões de xenofobia, gênero e sexualidade
muitas vezes são resultados diretos de relações que envolvem as doenças, saúde e história da
medicina. Um grande exemplo disso está a Ars Medica, uma obra do médico romano Galeno
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Revista Coletivo Cine-Fórum – RECOCINE | v. 2 - n. 1 | jan-abr | 2024 | ISSN: 2966-0513 | Goiânia, Goiás