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Ana Caroline Sartorelo dos Santos
*
RESUMO
A imaginação é uma parte incontrolável do ser estando presente em nosso cotidiano desde a
infância até a vida adulta. Partindo desse pressuposto, o presente artigo objetiva problematizar
a manifestação do imaginativo no plano sociocultural. Como alvo da pesquisa escolheu-se “O
Meu Pé de Laranja Lima”, de José Mauro de Vasconcelos. Optou-se por lidar com a edição de
2019, da editora Melhoramentos. Na obra em questão acompanharemos Zezé, um menino que
faz uso da imaginação e poeticidade para recriar sua realidade. Conhecemos a rotina do garoto
e as dificuldades por ele enfrentadas. Somos atraídos para diversas situações em que as emoções
são exploradas a todo instante. Zezé, como é carinhosamente conhecido o personagem principal
de “O meu de laranja lima”, de José Mauro de Vasconcelos, é uma pessoa determinada e
com uma imaginação extremamente fértil. O presente artigo se propõe a analisar a forma em
que é construída a imaginação do protagonista e como essa relação com a ilusão afeta seu
cotidiano. Trabalharei com as vivências de Zevisando identificar a forma como sua vida é
transformada através das experiências imaginárias. Aqui, procurarei analisar trechos da história
marcados pelo uso do devaneio e de que forma eles estão relacionados, ou afetam, o dia a dia
do protagonista. Seguirei, para tanto, os pressupostos de Gaston Bachelard (2008; 2009).
Apesar de utilizar das ideias do autor citado, busco explorar com minhas próprias palavras a
interpretação que surge em minhas leituras e analisar em que aspectos se o surgimento da
imaginação de Zezé.
Palavras-chaves: Imaginação. O Meu Pé de Laranja Lima. Devaneio. Poeticidade.
*
Mestranda em Teoria Literária pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp).
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Ana Caroline Sartorelo dos Santos
*
ABSTRACT
Imagination is an uncontrollable part of being present in our daily lives from childhood to
adulthood. Based on this assumption, this article aims to problematize the manifestation of the
imaginative at the sociocultural level. As the target of the research, “O Meu de Laranja
Lima”, by José Mauro de Vasconcelos, was chosen. We chose to deal with the 2019 edition,
from the publisher Melhoramentos. In the work in question we will follow Zezé, a boy who
uses his imagination and poetry to recreate his reality. We know the boy's routine and the
difficulties he faced. We are attracted to different situations in which emotions are explored at
all times. Zezé, as the main character of “O meu de orange lima”, by José Mauro de
Vasconcelos, is affectionately known, is a determined person with an extremely fertile
imagination. This article aims to analyze the way in which the protagonist's imagination is
constructed and how this relationship with illusion affects his daily life. I will work with Zezé's
experiences in order to identify the way in which his life is transformed through imaginary
experiences. Here, I will try to analyze excerpts from the story marked by the use of
daydreaming and how they are related to, or affect, the protagonist's daily life. To this end, I
will follow the assumptions of Gaston Bachelard (2008; 2009). Despite using the ideas of the
aforementioned author, I seek to explore in my own words the interpretation that emerges in
my readings and analyze the aspects in which Zezé's imagination emerges..
Keywords: Imagination. My orange tree file. Daydream. Poetry.
*
Master's student in Literary Theory at the Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp).
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INTRODUÇÃO
A imaginação está presente em nossas vidas a todo instante, mas é na infância que ela se
desenvolve. Quando a criança começa a ter ciência de si e do mundo ao seu redor, passa a
idealizar situações e criar cenários fictícios. É interessante o exercício de analisar uma
brincadeira infantil. Os indivíduos que dela participam parecem estar dentro de uma bolha, onde
tudo é possível. Personagens infantis que habitam as páginas de um livro não são diferentes.
Muitas vezes o autor reproduz suas próprias lembranças de infância e as recria em um novo
contexto, com um novo nome ou idade. É praticamente impossível ler uma boa história
protagonizada por crianças e não se identificar, voltar no tempo e relembrar a criança que um
dia já foi.
Zezé, como é carinhosamente conhecido o personagem principal de “O meu de laranja
lima”, de José Mauro de Vasconcelos, é uma pessoa determinada e com uma imaginação
extremamente fértil. O presente artigo se propõe a analisar a forma em que é construída a
imaginação do protagonista e como essa relação com a ilusão afeta seu cotidiano. Trabalharei
com as vivências de Zezé visando identificar a forma como sua vida é transformada através das
experiências imaginárias.
Em “O meu de laranja lima” vamos acompanhar Zezé, de apenas seis anos. O garoto
vem de uma família simples, da Zona Norte do Rio de Janeiro. Com o pai desempregado e seus
familiares passando por necessidade, o menino cria para si diversos universos nos quais a
brincadeira e a imaginação surgem como forma de escape. Quando os pais de Zezé se mudam
para uma nova casa, cada irmão mais velho escolhe uma árvore do quintal para chamar de sua,
enquanto resta para ele um pequeno de laranja lima (que se torna um de seus melhores
amigos e companheiro de aventuras).
A obra abordada se trata de um romance autobiográfico. No livro em questão,
encontramos uma narrativa que retrata a infância do autor. Podemos notar, inclusive, que o
protagonista possui o mesmo nome do escritor, José Mauro de Vasconcelos (cujo apelido é
Zezé). A narrativa se desenvolve a cerca de assuntos como a família e a vida privada, a
valorização da vida cotidiana e na própria sociedade, as dificuldades da classe trabalhadora e a
dor da perda. Embora “O Meu Pé de Laranja Lima” seja classificado como autobiográfico, não
seguirei o caminho da autobiografia em minha leitura.
Em “O meu Pé De Laranja Lima”, encontramos uma espécie de relato pessoal, no qual o
autor retrata alguns acontecimentos vivenciados por ele na infância. Apesar do foco da pesquisa
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ser sobre a imaginação do personagem, não podemos ligar os devaneios apenas a eventos
divertidos e criativos. Muitas vezes esses eventos estão relacionados ao cotidiano duro que Zezé
levava. Em sua maioria, os acontecimentos do livro relatam a dor e a tristeza que uma criança
não deveria conhecer.
O PÉ DE LARANJA LIMA
Como dito anteriormente, a família de Zezé vivia em extrema necessidade. Até chegado
o tempo que, com o pai desempregado, precisaram se mudar para uma casa ainda mais simples.
É na nova residência que Zezé se depara com seu novo amigo imaginário: o pé de laranja lima.
A partir daí a árvore passou a ser um refúgio, para onde ele fugia toda vez que se sentia solitário.
No início o menino relutou em aceitar a árvore, mas logo descobriu que ela era especial:
[…] Glória soltou a minha mão e esqueceu-se de que estava ficando mocinha.
Desabalou à carreira e abraçou a mangueira.
- A mangueira é minha. Peguei primeiro.
Antônio fez a mesma coisa com o de tamarindo. Não sobrara quase nada
para mim. Olhei quase chorando para Glória.
- E eu, Godóia?
- Corre lá no fundo. Deve ter mais árvore, bobo.
Corri, mas só encontrei um capinzal crescido. Um bando de laranjeira velha e
espinhuda. Junto do valão tinha um pequeno pé de laranja lima.
Fiquei desapontado. Todos estavam visitando os cômodos e determinando
para quem seriam os quartos.
Puxei a saia de Glória.
- Não tinha nada mais.
- Você não sabe procurar direito. Espere que vou achar uma árvore para
você.
E logo depois ela veio comigo. Examinou as laranjeiras.
- Você não gosta daquela? Olhe que é uma bela laranjeira.
Não gostava de nenhuma mesmo, nem daquela. Nem daquela, nem de
nenhuma. Todas tinham muito espinho.
- Para ficar com essas feiuras, eu ainda preferiria o pé de laranja lima.
- Onde?
Fomos lá.
- Mas que lindo pezinho de laranja lima! Veja que não tem nenhum espinho.
Ele tem tanta personalidade que a gente de longe já sente que é Laranja Lima.
Se eu fosse do seu tamanho, não queria outra coisa. (VASCONCELOS, 2019,
p. 35-36).
Quando paro para analisar esse trecho, o que me chama a atenção é a relutância em aceitar
as laranjeiras restantes. Zezé diz que elas têm muito espinho, mas me parece uma desculpa para
não aceitar algo que reflete tanto quem ele é. A criança, ainda que pequena, enfrenta muitos
espinhos em sua vida. Talvez, aquelas árvores lhe lembrassem demais de sua realidade, algo
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que com a imaginação ele tentava ofuscar. Depois de um tempo, ainda ressentido pela árvore
que lhe restou, algo acontece:
Emburrei. Sentei no chão e encostei a minha zanga no de Laranja Lima.
Glória se afastou sorrindo.
- Essa zanga não dura, Zezé. Você vai acabar descobrindo que eu tinha rao.
Cavouquei o chão com um pauzinho e começava a parar de fungar. Uma voz
falou vindo de não sei de onde, perto do meu coração.
- Eu acho que sua irmã tem toda a razão.
- Sempre todo mundo tem toda a razão. Eu é que não tenho nunca.
- Não é verdade. Se você me olhasse bem, você acabava descobrindo.
Eu levantei assustado e olhei a arvorezinha. Era estranho porque sempre eu
conversava com tudo, mas pensava que era o meu passarinho de dentro que se
encarregava de arranjar fala.
- Mas você fala mesmo?
- Não está me ouvindo?
E deu uma risada baixinha. Quase saí aos berros pelo quintal. Mas a
curiosidade me prendia ali.
- Por onde você fala?
- Árvore fala por todo canto. Pelas folhas, pelo galhos, pelas raízes. Quer ver?
Encoste seu ouvido aqui no meu tronco que você escuta meu coração bater.
Fiquei meio indeciso, mas vendo o seu tamanho, perdi o medo. Encostei o
ouvido e uma coisa longe fazia tique... tique...
- Viu?
- Me diga uma coisa. Todo mundo sabe que você fala?
- Não. Só você.
- Verdade?
- Posso jurar. Uma fada me disse que quando um menininho igualzinho a vo
ficasse meu amigo, que eu ia falar e ser muito feliz (VASCONCELOS, 2019, p.
36-37).
A tristeza, junto com o sentimento de ser o único que não possuía algo que queria, fez
Zezé expandir sua imaginação e recriar através de imagens oníricas um pé de laranja lima que
fala. Podemos notar, e isso ficará mais claro no decorrer do artigo, que vários dos episódios de
devaneio poético surgem quando o protagonista enfrenta uma situação complicada em sua vida.
Aqui, se sentindo excluído, ele recorre a fantasia para suprir uma necessidade.
Quando se fala em devaneio poético pensa-se na distorção da realidade. Muitas vezes o
sonhador atribui traços poéticos a imagens que não necessariamente possuem essas
características. Através da transformação dessas figuras o criador passa a vivenciar a realidade
de outra maneira, como se as imagens oníricas criadas fossem incontestáveis. Essa experiência
é descrita por Bachelard:
Ao falar de uma Poética do devaneio, embora durante muito tempo eu tenha
sido tentado pelo título mais simples, “O devaneio poético”, pretendi assinalar
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a força de coerência que um sonhador recebe quando é realmente fiel aos seus
sonhos, e seus sonhos adquirem uma coerência graças aos seus valores
poéticos. A poesia constitui ao mesmo tempo o sonhador e o seu mundo.
Enquanto o sonho noturno pode desorganizar uma alma, propagar, mesmo
durante o dia, as loucuras experimentadas durante a noite, o bom devaneio
ajuda verdadeiramente a alma a gozar do seu repouso, a gozar de uma unidade
fácil. Os psicólogos, em sua embriaguez de realismo, insistem demais no
caráter de evasão dos nossos devaneios. Nem sempre reconhecem que o
devaneio tece em torno do sonhador laços suaves, que ele é “ligante” em
suma, que, em toda a força do termo, o devaneio “poetiza” o sonhador (2009).
Mesmo sendo termos com palavras distintas, devaneio e imaginação, o devaneio poético
está ligado diretamente a imaginação poética, visto que nos dois casos existe a capacidade de
criar imagens autônomas que fogem do caráter representacional dessas figuras. A palavra
“sonhador” usada por Bachelard é muito poética ao meu ver, pois é exatamente assim que
enxergo nosso protagonista, Zezé.
O JARDIM ZOOLÓGICO
Trago muitos trechos da obra ao longo do discurso pois sinto que eles falam por si sós.
Outro exemplo, que encontramos no livro com passagens dessa poética imaginação, está nos
momentos em que Zezé cita o galinheiro em seu quintal, ou, na mente fértil do menino, o Jardim
Zoológico. Uma das principais características do devaneio poético é essa capacidade de
renovação das imagens. Em seus passeios pelo zoológico, Zezé sempre estava diante de
experiências inéditas, porque a imaginação poética formulava as imagens com uma pluralidade
de sentidos. É possível notar no trecho abaixo como a criação desses cenários funcionava:
Chegamos até perto do galinheiro velho. Dentro as duas frangas claras
estavam ciscando e a velha galinha preta era tão mansa que a gente até coçava
a cabeça dela.
- Primeiro vamos comprar os bilhetes de entrada. Dê-me a mão que a criança
pode se perder nessa multidão. Viu como está cheio aos domingos?
Ele olhava e começava a enxergar gente por toda a parte e apertava mais minha
mão.
Na bilheteria empinei a barriga para frente e dei um pigarro para ter
importância. Meti a mão no bolso e perguntei à bilheteira:
- Até que idade criança não paga?
- Até cinco anos.
- Então uma de adulto, faz favor.
Peguei as duas folhinhas de laranjeira de bilhete e fomos entrando.
- Primeiro, meu filho, você vai ver que beleza são as aves. Olhe papagaios,
periquitos e araras de todas as cores. Aquelas bem cheias de penas diferentes
são as araras arco-íris.
E ele arregalava os olhos extasiado.
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- Eu queria era chegar logo nos leões.
- Já vamos lá.
[...]
- Chegamos.
Apontei as duas leoas amarelas, bem africanas. Quando ele quis alisar a cabeça
da pantera negra...
- Que idéia, pequerrucho. Essa pantera negra é o terror do Jardim. Ela veio pra
cá porque arrancou dezoito braços de domadores que comeu.
Luís fez uma cara de medo e retirou o braço apavorado (VASCONCELOS,
2019, p. 29-30).
Com o devaneio poético, Zezé levava seus irmãos a viver toda a intensidade dos passeios
imaginários em torno do jardim zoológico. A potência dessa imaginação fazia com que o
galinheiro assumisse forma de um zoológico. Apesar de ser uma construção antiga e mal
acabada, as imagens do galinheiro se renovavam para se transformar em um local grande com
muitos tipos de animais. Quanto mais utilizavam recursos lúdicos em suas brincadeiras, mais o
cenário se tornava real para eles.
Em “O Meu Pé de Laranja Lima”, a memória manifesta-se ainda, e de forma continuada,
na mistura entre o concreto e a fantasia e entre o sonho e a realidade. O protagonista imagina
diálogos com seres personificados e recria espaços de fantasia no quintal de sua casa. Assim
como no caso do Zoológico, onde Zezé levou seu irmão Luís a enxergar animais selvagens onde
não havia, temos também outra brincadeira em que o menino consegue transformar as imagens
e criar um cenário onde é possível sentir medo:
Plequet-plequet-plequet!
A cavalada dos índios estava fazendo um barulho louco. O vento, a galopada,
a carreira louca, as nuvens de poeira e a voz de Luís quase que gritando.
-Que foi? Algum búfalo veio para o seu lado?
-Não. Vamos brincar de outra coisa. Tem muito índio e estou com medo
(VASCONCELOS, 2019, p.106).
É interessante ressaltar que, embora não parecesse, Zezé compreendia sua dura realidade.
Por mais que, em sua maioria, os acontecimentos do livro retratem esse lado sonhador do
personagem, o menino entendia o cotidiano que enfrentava. Pode parecer que ele não passava
de uma criança que vivia de ilusão, criando e distorcendo cenários em sua cabeça, mas Zezé
possuía uma bela sensibilidade quando se tratava de sua família. Exemplo disso é quando ele
comenta a vida difícil da mãe desde muito nova. Observando suas palavras, conseguimos
perceber a empatia empregada por ele e como, apesar de viver sempre no mundo da imaginação,
ele conseguiu entender pelo que a mulher passou:
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Mamãe nasceu trabalhando. Desde os seis anos de idade, quando fizeram a
Fábrica que puseram ela trabalhando. Sentavam Mamãe bem em cima de uma
mesa e ela tinha que ficar limpando e enxugando ferros. Era tão pequenininha
que fazia molhado em cima da mesa porque não podia descer sozinha... Por
isso ela nunca foi à Escola e nem aprendeu a ler. Quando eu escutei essa
história dela fiquei tão triste que prometi que quando fosse poeta e sábio eu ia
ler minhas poesias para ela. (VASCONCELOS, 2019, p. 34-35).
O PÁSSARO DE ZEZÉ
Existe um momento na história que me encanta muito. Apesar de não estar ligada
diretamente a esses devaneios poéticos e a criação de cenas, encontramos uma pontinha da
imaginação do menino que florescia desde muito novo:
Se não estivesse na rua eu começava a cantar. Cantar era bonito. Totoca
sabia fazer outra coisa além de cantar, assobiar. Mas eu por mais que
imitasse, não saía nada. Ele me animou dizendo que era assim mesmo, que
eu ainda não tinha boca de soprador. Mas como eu não podia cantar por fora,
fui cantando por dentro. Aquilo era esquisito, mas se tornava muito
gostoso... Totoca me deu um puxão. Eu acordei.
Que é que você tem, Zezé? Nada. Tava cantando.
Cantando?
É
Então eu devo estar ficando surdo.
Será que ele não sabia que se podia cantar para dentro? Fiquei calado. Se não
sabia eu não ensinava (VASCONCELOS, 2019, p. 13-14).
Percebemos que Zezé estava cantando uma canção em sua mente, com sua voz interior,
mas o menino não entendeu a indagação do irmão que estranhou quando o menino disse o que
estava fazendo. Para ele, era normal “cantar para dentro” e provavelmente algo que nem todos
deviam saber fazer, que ele diz “Se não sabia eu não ensinava”. Em sua ingenuidade, ele
presumiu que o irmão não entenderia o que se passava, então não deu mais explicações. Totoca
não podia ouvir a cantoria de Zezé por se tratar de notas musicais imaginadas, não eram sentidas
com o ouvido, mas com a alma. Nesse momento Zezé nos leva a pensar em uma fala de
Bachelard (2008), quando diz que se está na idade de imaginar, não se sabe dizer como e por
que se imagina. Quando se pode dizer como se imagina, já não se imagina.
Outra fala, um pouco relacionada a isso é quando Zezé diz “meu passarinho lá dentro me
falou uma coisa”. Nesse trecho podemos deduzir que o protagonista entendia seus pensamentos
como se um pássaro vivesse em sua mente. Claro que se pode atribuir a fatores de idade, por
exemplo. Por ser uma criança, é comum que ele pensasse algo parecido, mas levando em
consideração todo o contexto, podemos relacionar esse acontecimento a imaginação do
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protagonista: “fui me lembrando de alguma coisa que tinha acontecido uma semana antes. Meu
passarinho lá dentro falou uma coisa” (VASCONCELOS, 2019, p. 19).
Zezé estabelece amizade e mantém diálogos imaginários com seres que não são humanos
e apenas lhe são “visíveisa si próprio e mistura personagens e cenários ficcionais. Percebemos,
pela próxima citação, que a família do menino já havia se acostumado com seu jeito perspicaz.
Ao final do livro, quando Zezé adoece, todos logo ligam o acontecimento ao fato de que
Minguinho, como era chamado o pé de laranja lima, seria cortado:
-Foi um choque muito grande. Um trauma muito forte. Ele só viverá se
conseguir vencer esse choque.
Glória levou o médico para fora e contou.
-Foi choque mesmo, doutor. Desde que soube que iam cortar o pé de laranja
lima ficou assim.
-Então precisam convencê-lo de que não é verdade.
-Já tentamos de todas as maneiras, mas ele não acredita. Para ele, o pezinho
de laranja é gente (VASCONCELOS, 2019, p. 183).
Nosso protagonista era conhecido por suas traquinagens, vivia sempre aprontando. Seus
parentes lhe falavam tanto sobre a figura do diabo que ele realmente acreditava ser um, ou
possuir um dentro dele. Para muitos, ser comparado com algo ruim ou bom era apenas isso,
uma comparação, uma metáfora talvez. Mas Zezé era diferente, e com toda sua imaginação se
via como a figura de quem tanto falavam. Nos trechos a seguir percebemos como as falas de
seus familiares, munidas de toda essa imaginação que o menino tinha dentro de si,
influenciaram em como o garoto se enxergava:
Parece que o diabo fica soprando coisas no meu ouvido. Senão eu não
inventava tanta peraltice como diz meu Tio Edmundo.
[…]
O diabo se soltou dentro de mim. A revolta estourou como um furacão. No
começo veio uma simples rajada (VASCONCELOS, 2019, p. 150).
CONCLUSÃO
Toda essa experiência, encontrada nas páginas do livro, foi possível porque Zezé
deixou de enxergar superficialmente os objetos (laranjeira, galinheiro, etc) e as situações (visita
ao galinheiro, cantar uma canção, etc). Usando sua imaginação, ele se permitiu um olhar poético
para tudo o que enfrentava na vida. Claro que em “O Meu Pé de Laranja Lima”, pelo fato de o
protagonista ser criança, nós aceitamos melhor tudo o que acontece na história. Apesar de
sabermos que muitas vezes o menino vive em devaneio, acabamos nos acostumando e aceitando
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como “seu jeito de ser”. Seria interessante analisar essa mesma história, mas com um
protagonista adulto. Provavelmente ele seria julgado, por outros personagens ou até mesmo
pelo leitor, como lunático.
A obra abordada consegue explorar a emoção de quem lê. Ao acompanhar a família e o
cotidiano de Zezé conseguimos compreendê-lo melhor. Crianças costumam ser muito
menosprezadas na sociedade. Acha-se que possuem menos capacidade intelectual ou de
compreensão. Mas é possível notar no livro que isso não é verdade. Basta ter uma conversa
com uma criança real e você notará como elas são cirúrgicas no que falam e fazem, prestam
atenção em tudo ao seu redor. Zezé é extremamente sensível e por esse, e outros motivos,
conseguia enxergar beleza onde para muitos nada existia. Claro que no mundo real não
podemos nos dar ao luxo de viver na ilusão, sonhando com algo que gostaríamos que
acontecesse, mas se tem algo que aprendi com a obra, é a usar a imaginação poética para tornar
tudo mais leve. Zezé conseguia ser feliz apesar de sua dura realidade e se é possível para ele,
nós também podemos conseguir.
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REFERÊNCIAS
ARALDO, Adriana Falcato Almdeida. Diálogos ao pé da árvore: uma conversa com a
roteirista de “Meu pé de laranja-lima. In: Literartes. São Paulo, v. 1, n. 2, p. 18-22, jan./dez.
2013.
BACHELARD, Gaston. A poética do devaneio. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
BATISTA, Antonio Ozaias. Sonhos entre as páginas do Meu Pé de Laranja Lima:
imaginação e devaneio poéticos voltado à infância. Dissertação (Doutorado em Ciências
Sociais) Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2018.
SANTOS, Katrym Aline Bordinhão dos. FERREIRA, Dábila Vitor. “O Romance
Autobiográfico em Meu Pé de Laranja Lima.” In: Travessias. Paraná, v. 10, n. 2, 2015.
VASCONCELOS, José Mauro de. O Meu Pé de Laranja Lima. 4. ed. São Paulo:
Melhoramentos, 2019.
**Este trabalho foi originalmente publicado no livro Diálogos
Científicos (2023), da Editora Coletivo Cine-Fórum,
disponível em www.coletivocineforum.com/livros