Revista Coletivo Cine-Fórum – RECOCINE
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RECOCINE, v. 1. n. 2 | mai-ago | 2023 | Goiânia, Goiás
a força de coerência que um sonhador recebe quando é realmente fiel aos seus
sonhos, e seus sonhos adquirem uma coerência graças aos seus valores
poéticos. A poesia constitui ao mesmo tempo o sonhador e o seu mundo.
Enquanto o sonho noturno pode desorganizar uma alma, propagar, mesmo
durante o dia, as loucuras experimentadas durante a noite, o bom devaneio
ajuda verdadeiramente a alma a gozar do seu repouso, a gozar de uma unidade
fácil. Os psicólogos, em sua embriaguez de realismo, insistem demais no
caráter de evasão dos nossos devaneios. Nem sempre reconhecem que o
devaneio tece em torno do sonhador laços suaves, que ele é “ligante” – em
suma, que, em toda a força do termo, o devaneio “poetiza” o sonhador (2009).
Mesmo sendo termos com palavras distintas, devaneio e imaginação, o devaneio poético
está ligado diretamente a imaginação poética, visto que nos dois casos existe a capacidade de
criar imagens autônomas que fogem do caráter representacional dessas figuras. A palavra
“sonhador” usada por Bachelard é muito poética ao meu ver, pois é exatamente assim que
enxergo nosso protagonista, Zezé.
O JARDIM ZOOLÓGICO
Trago muitos trechos da obra ao longo do discurso pois sinto que eles falam por si sós.
Outro exemplo, que encontramos no livro com passagens dessa poética imaginação, está nos
momentos em que Zezé cita o galinheiro em seu quintal, ou, na mente fértil do menino, o Jardim
Zoológico. Uma das principais características do devaneio poético é essa capacidade de
renovação das imagens. Em seus passeios pelo zoológico, Zezé sempre estava diante de
experiências inéditas, porque a imaginação poética formulava as imagens com uma pluralidade
de sentidos. É possível notar no trecho abaixo como a criação desses cenários funcionava:
Chegamos até perto do galinheiro velho. Dentro as duas frangas claras
estavam ciscando e a velha galinha preta era tão mansa que a gente até coçava
a cabeça dela.
- Primeiro vamos comprar os bilhetes de entrada. Dê-me a mão que a criança
pode se perder nessa multidão. Viu como está cheio aos domingos?
Ele olhava e começava a enxergar gente por toda a parte e apertava mais minha
mão.
Na bilheteria empinei a barriga para frente e dei um pigarro para ter
importância. Meti a mão no bolso e perguntei à bilheteira:
- Até que idade criança não paga?
- Até cinco anos.
- Então uma de adulto, faz favor.
Peguei as duas folhinhas de laranjeira de bilhete e fomos entrando.
- Primeiro, meu filho, você vai ver que beleza são as aves. Olhe papagaios,
periquitos e araras de todas as cores. Aquelas bem cheias de penas diferentes
são as araras arco-íris.
E ele arregalava os olhos extasiado.