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RECOCINE, v. 1. n. 2 | mai-ago | 2023 | Goiânia, Goiás
Fernando Guimarães Saves
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Aguinaldo José Gonçalves
RESUMO
Este artigo visa à discussão dos processos de escritura engendrados por Marcel Proust (1871-
1922) na composição de sua obra-prima, Em busca do tempo perdido, escrita ao longo de
catorze anos. Ao se analisarem esses procedimentos construtivos da narrativa proustiana,
buscar-se-á, também, compreender como o fluxo narrativo do texto carrega, em si, uma isotopia
bem definida desde o primeiro volume do grande romance, qual seja, a crítica estético-filosófica
em relação à Literatura e às Artes de um modo geral, denunciado uma espécie de visão cultural,
social e econômica do autor e, sobretudo, do narrador Proust.
Palavras-chaves: Crítica literária. Estilo. Marcel Proust.
*
Mestrando em Teoria Literária pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP). Bolsista
Capes.
Professor Sênior da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP). Livre-docente em Teoria
Literária pela mesma instituição. Doutor em Letras (Teoria Literária e Literatura Comparada) pela Universidade
de São Paulo (USP).
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Fernando Guimarães Saves
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Aguinaldo José Gonçalves
ABSTRACT
This article aims to discuss the writing processes engendered by Marcel Proust (1871- 1922) in
the composition of his masterpiece, In search of lost time, written over fourteen years. By
analyzing these constructive procedures of the Proustian narrative, we will also seek to
understand how the narrative flow of the text carries, in itself, a well-defined isotopy since the
first volume of the great novel, that is, the aesthetic-philosophical criticism in relation to
Literature and the Arts in general, a kind of cultural, social and economic vision of the author
and, above all, of the narrator Proust, which is denounced.
Keywords: Literary criticism. Marcel Proust. Style.
*
Master's student in Literary Theory at Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP). Capes
scholarship.
Senior Teacher at the São Paulo State University Júlio de Mesquita Filho (UNESP). Associate professor in
Literary Theory at the same institution. PhD in Letters (Literary Theory and Comparative Literature) from the
University of São Paulo (USP).
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O TEMPO SENSÍVEL
Este texto consiste numa forma de ensaio no sentido estrito do termo. A literatura, em
algumas raras vezes, se constitui de um exercício de tiro livre ou de lances livres, como é o caso
da asa-delta, em que apenas se tem a certeza do ponto de partida, mas não se tem a certeza do
ponto de chegada.
A escrita ficcional de Marcel Proust é um caso que vai ao encontro do que acima
assinalamos. São muitas páginas atuando como um moto-perpétuo da invenção que vai criando
ilhas que se interligam e formam arquipélagos num ir-e-vir de sentidos. Se o caminho disso
segue numa linha que imita a da própria existência por um lado; por outro vai construindo
meandros circulares que mergulham, sem descanso, plenos de vitrais, de colunas arquitetônicas,
enfim, que mais lembram uma catedral - nomeação que a crítica lhe conferiu. Em busca do
tempo perdido é a obra principal do escritor francês nascido em 1871 e morto em 1922; essa
composição é ímpar por vários aspectos e, como dizem os franceses, trata-se daquela obra sem
parágrafos que até mesmo dos nativos exige um fôlego nem sempre presente no leitor. Nesse
sentido, parece uma produção que desenha e fundamenta as idiossincrasias do autor, que se vale
do fluxo narrativo para desenvolver um dos mais profícuos exercícios de crítica literária e de
crítica da arte em geral.
A enumeração dos sete romances que constroem a obra é importante para que possamos
atingir o escopo deste pequeno exercício de crítica ensaística que nos foi outorgada. Parece
tratar-se mais de um laboratório ficcional como pretexto para o desenvolvimento de um trabalho
crítico. Assim, respeitando a ordem com que os pedaços da coletânea foram compostos,
temos: No caminho de Swann, À sombra das raparigas em flor, O caminho de
Guermantes, Sodoma e Gomorra, A prisioneira, A fugitiva e O tempo redescoberto. Dentro de
nossa forma de compreender a escrita proustiana, descobrimos que o ideal seria realizar a leitura
dos sete volumes e, ao chegar em O tempo redescoberto, voltar ao primeiro, para criar a relação
intertextual e intratextual da significação dessa produção. Claro que em se tratando de obra tão
longa, isso é possível para o aficionado crítico que tenha entendido o que está inscrito nos
livros e não apenas o que está escrito. Esta colocação é considerada pelo próprio narrador no
volume último das publicações.
A questão que se instaura nos fundamentos vitais da obra proustiana está na sua visão do
Tempo e de suas vicissitudes filosóficas ao longo da obra. Não podemos deixar de entrever que
Em busca do tempo perdido consiste numa concepção profunda do conceito de temporalidade
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que advém do grande pensador e teórico, Henri Bergson, desenvolvido em suas obras Matéria
e memória e A evolução criadora, livros que foram sobejamente lidos e estudados por Marcel
Proust. Dentre as acepções mais representativas do pensamento bergsoniano estão os dados
imediatos da memória e as distinções entre a volatilidade da memória voluntária e da memória
involuntária. Esses conceitos foram absorvidos por Proust e aprofundados dentro de sua ficção,
acabando por criar uma tensão dialética entre reflexão estética, reflexão analítica e narração.
Assim, todas as personagens da obra vão caminhando e evoluindo dentro da condição humana
e das vertentes plurais de seus juízos de valor, de suas vontades, de suas excentricidades,
compondo o triste painel da existência numa Paris do final do século XIX, com questões
políticas e sociais permeadas por uma visão aristocrática e por dimensões singulares de ver o
mundo. Proust atravessou a segunda metade do século XIX e no início do século XX dá início,
depois de alguns exercícios sobre literatura, a uma peregrinação que se inicia cambaleante e vai
penetrando no seu fluxo de realização.
Como disséramos antes, Proust se vale do conceito de memória voluntária e involuntária
para criar uma das mais profícuas formas de relação com o tempo e com a criação, e sua obra
iniciou-se por meio de uma contrarregra da criação artística, à revelia do seu pensamento
ficcional, por meio de uma ojeriza a um influente crítico biográfico e determinista da época,
Sainte-Beuve. Dentro dos exercícios do crítico que queria ser, ao tentar expor seu pensamento
ferino contra Saint-Beuve, Proust deu início a um ensaio e tendo esse texto em
desenvolvimento, começa a misturar na sua linguagem o princípio de sua ficção, e tudo se
transforma no trabalho de Marcel Proust, que não cessaria jamais, até à sua morte
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e assim deu
origem ao primeiro volume, No caminho de Swann, em que nele essa questão do Tempo e da
memória involuntária ressalta em passagens célebres. É nesse primeiro volume que a infusão
da madeleine na chávena de chá reportaria o narrador a universos distantes pela memória
involuntária que tudo isso evoca; mas essa noção de sensibilidade da memória não cessa durante
toda a obra e torna-se traço determinante no conjunto do texto. A todo instante, temos a
vivificação do Tempo no seu sentido de durée bergsoniano. São essas durações temporais que
aprofundam os meandros a que aludimos anteriormente e que fazem sentido predominante na
existência do último volume da obra. Consideramos O tempo redescoberto a “poção mágica”
5
Sobre o texto crítico de Marcel Proust a respeito de Sainte-Beuve, temos uma bela tradução realizada e publicada pela
Editora Iluminuras. O texto é apresentado por Aguinaldo Gonçalves e denominado “O processo holometabólico de
Marcel Proust” e divide a obra de Proust em quatro fases fundamentais: o ovo, a larva, o casulo e a borboleta. A
“borboleta” representa a obra Em busca do tempo perdido.
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de toda a obra, e o narrador atua como diretor de uma peça grandiosa em que após se encerrarem
as cortinas, volta munido de uma consciência criadora e racionalizadora do processo que
denominou todo o livro. Em O tempo redescoberto ocorre o matinée no palácio dos
Guermantes, e é nesse espaço, que se torna um espaço “oracular”, que o narrador vai vislumbrar
todo o universo mítico e autorreflexivo dos seis volumes anteriores. Torna-se um volume
espacializante, diria Merleau-Ponty, em que as convergências temporais conduzem a
elucidações da memória para os pontos de confluência entre o tempo de vida e o tempo das
vivências; o espaço das referências evidentes e o espaço mítico das transmutações sensoriais.
Lendo o sétimo volume, tudo que o precedeu ganha novo lugar e ordem, e os “vitrais da
catedral” encontram suas cores e formas amalgamadas no espaço da criação. O matinée da
princesa de Guermantes vai reunir todos os ingredientes ficcionais que perfilaram na obra. Os
convidados vão chegando nas suas carruagens com suas expressões envelhecidas e cada uma
delas requer do leitor uma lembrança, um reportar-se à memória voluntária, recuperando a
formatação da personagem durante a sua vivência na obra e, com ela, vêm todos os seus vícios,
todas as suas formas de manifestação nos seus defeitos. Nesse trágico movimento de realismo
da vida, com seus contornos bem definidos, uma das personagens parece de repente catalisar
todas as demais personagens por ser, talvez, uma das mais falhas de caráter, o marquês de
Charlus,
É com ele, o marquês, que ocorre uma das tensões temporais mais intensas da obra: ao
tropeçar num obstáculo, numa pedra do calçamento e ser surpreendido pelo tropeço, ocorre uma
remissão ao choque também ocorrido com a madeleine, em O caminho de Swann. Como o
narrador, que é um convidado, não pode atrapalhar o concerto que acontece no grande salão,
ele permanece na antessala e dirige-se à biblioteca; antes, porém, ocorre um outro choque
temporal, quando cai um talher da mão do garçom, e o tilintar da colher, bem como o tropeçar
na pedra, bem como a madeleine no chá são formas que Proust encontra para penetrar na
remissão dos tempos vividos ou olvidados, que a memória involuntária pode recuperar.
Nessa entrada do narrador na biblioteca se inicia o alto plano de reflexão do romance. Começa
uma configuração do narrador e o diretor de teatro a que aludi e a partir daí, uma série de
considerações são realizadas sobre a arte em geral e Proust se vale de uma arte em sua
origem para tecer suas reflexões: trata-se da arte cinematográfica, a qual ele usa para mostrar
diferenças fundamentais entre arte e realidade, e constituição do signo estético e do signo da
vida. Lendo bem as questões trazidas no fusionismo entre o narrador Marcel e o autor Marcel
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Proust, o crítico de arte adquire uma dimensão metalinguística na visão que tem de seu próprio
trabalho de invenção e é assim que podemos compreender o chamado “tempo perdido” do título
da obra e o sentimento de busca desse tempo.
Na verdade, esse tempo é complexo e se constrói pelos malabarismos dinâmicos da
linguagem que figurativizam um modo de ver a existência e a presentificação da vida posta em
forma de linguagem. Nesse movimento, aconselhamos a leitura de um dos melhores ensaios de
Walter Benjamin denominado “Sobre alguns temas em Baudelaire”. Trata-se de um texto que
traz Baudelaire em seu título, mas que na verdade terá como fio de prumo o texto proustiano,
sobretudo no que diz respeito à experiência e ao modo como os dois autores Baudelaire e
Proust trouxeram, dialeticamente, essas tensões à baila.
Nessa linha de raciocínio, há de notar-se que as personagens da obra Em busca do tempo
perdido não são tantas quanto se poderia imaginar, mas elas criam uma espécie de universo
humano com algumas caricaturas ficcionais incrustradas em algumas personas que passam a
ser figurativizadas e que vão seguindo, passo a passo, no rumo da morte. Assim, a obra
apresenta um quadro bem diferenciado de outros romances e, dessa forma, pode-se falar de um
antirromance por conta das grandes inovações da ficção moderna. Temos, portanto, um quadro
de humanidades e não propriamente de personagens, as quais seguem dentro de seus
comprometimentos humanos por uma trilha de uma existência inexorável que se impõe nos
redutos do que não se pode fugir. Claro que temos personagens como Carlos Swann, Odette de
Crécy, Marquês de Charlus, princesa de Guermantes, Albertine, Gilbert e poucas outras
personagens, sendo cada uma delas representação de verdadeiros paradigmas de onde espargem
reveses nas infinitas contingências do desassossego existencial.
A isso denominamos o moto-perpétuo do fluxo evolutivo/involutivo da condição humana
marcada por este universo de seres humanos construído por Marcel Proust e posto no corredor
inexorável, sem tréguas, para não dizer esfaimados, como Ugolino e seus filhos. A vontade de
viver e de sobrepor-se um ao outro, as vaidades, os preconceitos, as intrigas interiores, a falta
de humildade e de resignação são os alimentos que forjam a vociferação que chega, às vezes, a
tangenciar a autofagia.
O que move essa triste condição do homem é o que conduziu Marcel Proust a conseguir,
com fôlego místico, escrever os sete volumes de sua obra Em busca do tempo perdido.
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O TEMPO NA ARTE E A ARTE NO TEMPO
A questão do tempo na obra possui dimensões perfunctórias no que diz respeito à
bifurcação entre o cronológico da existência e a condição sincrônica do estado essencial do ser.
Trata-se de uma obra que perscruta o signo, para dizer como Gilles Deleuze, com a
essencialidade e as dissensões das veleidades humanas no prisma de ângulos obtusos da
sequência inexorável da vida.
Quando Marcel Proust busca o título dessa vasta obra, diferentemente ao que pode
parecer, ele está encontrando a síntese metafórica se valendo de uma gica aparentemente
simples: Em busca do tempo perdido, em primeiro lugar, aponta para um dinamismo mental e
sensorial da captação do essencial e isso não está numa evolução religiosa ou filosófica ou
epistemológica, mas se volta para a própria obra de arte, enquanto fenômeno de mobilização
verticalizante do tempo. Por isso, conseguiu construir uma obra anfíbia em que se vale de uma
peregrinação épica de multíplices personagens, muitas delas quase anônimas, em que aparecem
apenas nomes sem rosto, perfis aristocráticos de uma sociedade volátil, e outras
performatizando algumas alegorias mundanas por meio das quais podemos compreender a triste
condição, como já dissemos anteriormente, dos desígnios e das fraquezas e das carências e dos
medos que acabam refletindo as maledicências, muitas vezes indeléveis, do homem nas suas
relações na sociedade.
Ao dizer que essas questões não podem ser desentranhadas pela religião ou pela filosofia,
a obra de Proust tenta realizar esses fenômenos pela arte e pela reflexão sobre ela. Assim,
durante as páginas que compõem os sete volumes da obra, muitos são os artistas que aparecem
preenchendo e iluminando os movimentos da obra, trazendo sempre, como diria Roland
Barthes, não os fundamentos da verdade sobre as coisas, mas os procedimentos da validade
sobre as coisas.
Numa das passagens de No caminho de Swann, a narrativa diz o seguinte: “A mobilidade
das coisas que nos cercam talvez nos seja imposta pela certeza que temos de que as coisas
sejam, elas mesmas, e não outras coisas causadas pela imobilidade do nosso pensamento
perante elas.” Como se nota, a crítica da passagem é em direção à certeza que possamos ter das
coisas, pois o homem, na sua pequenez e mediocridade, quer ter a certeza como um aspecto
pontual, o que é impossível, e isso está relacionado à imobilidade e, ainda mais, à condição de
imobilidade que se tem diante das coisas, diferentemente da visão relativizada que a inteligência
deve ter diante, sobretudo, das ideias que movem o nosso pensamento. É por que a Arte
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ocupa lugar essencial e de destaque na movimentação de nosso pensamento. Proust era movido
pelos fluxos da obra de arte em todas as suas esferas; os signos da arte são o alimento desse
pensamento fértil e criativo, e comparo-o, aqui, mutatis mutandis, ao espírito evoluído,
determinante e criativo de um outro francês: Charles Baudelaire, cujo olhar semiológico girava
para todas as vertentes que brilham ao redor do sol, seja na reflexão sobre as artes, realizando
as críticas de três Salões de arte históricos (1845, 1855, 1859) e Curiosités esthetiques (1868),
seja, sobretudo, na realização de sua obra poética Les fleurs du mal (1857).
Há, entretanto, uma diferença fundamental entre o método do qual Baudelaire se valeu
para tratar as artes e o método utilizado por Marcel Proust. No caso de Baudelaire, ele divisou
as águas: assumiu a função crítica nas suas leituras e análises da literatura e das obras de arte
plástica, bem como da música, haja vista os grandes textos a respeito dos pintores e da música
de Richard Wagner, que pode ser atestado por seu artigo sobre Tannhäuser, apresentação de
Richard Wagner em Paris, em 1861. No caso de Proust, o método é menos explícito, e as águas
se misturam, pois ele constrói e daí seu grau elevado de originalidade um fusionismo entre
crítica e invenção, ao que denomino “ensaio ficcional”. Proust realiza um elevadíssimo
procedimento de bricolagem entre dois gêneros distintos: uma narrativa constituída pelo
andamento de atores que perseguem o fluxo dialético da existência, como dissemos, e um
verdadeiro universo semiológico como uma espécie de parede do imaginário tricotado nos
liames da ficção.
Dentro deste quadro de considerações, devemos dizer que os sistemas artísticos presentes
e perseguidos criticamente por Marcel Proust são os seguintes: a macroestrutura da obra é
sustentada por quatro pilares que se erguem e determinam o conjunto da composição; são eles
a Literatura, a Pintura, a Música e o Teatro e a partir deles outros aparecem, aqui e acolá, e
ganham seu espaço no interior da obra, como a Arquitetura, a Escultura, as instalações
funcionais os obeliscos e os chafarizes dentre outros.
Durante toda a obra, Marcel Proust revela a sua profunda visão clássica da arte, o seu
respeito pelas dimensões extensivas dos sistemas artísticos estabelecidos por Hegel. Queremos
dizer que afora os sistemas de arte propostos por Alexander Baumgarten, no século XVIII,
Proust traz para a obra outros procedimentos que deixaram de ser considerados Arte, mas que
antes do século XVIII eram tidos como tais, dentre eles a jardinagem, o mobiliário, a
indumentária, a culinária (quanto a esta, ela forma na obra proustiana um sistema à parte,
chegando a existir um estudo com as iguarias destacadas por Proust e que na obra eram
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preparadas pela cozinheira, pois desse universo se extraíam relações de sentido comparando
Francisca, a cozinheira exigente à procura do melhor ossobuco e presunto para a confecção do
prato, com Michelangelo, que era muito exigente na escolha do rmore para compor suas
esculturas); se esses universos arrolados não podem ser considerados obra de arte stricto senso,
Proust extraía deles o que possuem de concepção do belo pela compleição estética que
possuíam, e tudo isso compõe a ambiência da obra e ilustra os caminhos, por exemplo, dos
Champs-Élysées, por onde tantas vezes passeiam as personagens.
As obras de arte em todas as suas nuanças e seus fundamentos estéticos entram
sorrateiramente na obra e confundem-se nos diálogos das personagens ou em comentários mais
decisivos do narrador, nas falas cotidianas e em universos mais detidos, tais como nos teatros
da ópera ou nas exposições de pinturas, e tudo isso disseminado no entrecruzar da dinâmica das
personagens monitoradas pela visão arguta do narrador. A figurativização dos sistemas
artísticos se baseia em obras verídicas, que são referencialmente existentes; no caso da pintura,
são por volta de 55 pintores citados, tanto da pintura clássica quanto da pintura moderna
(referimo-nos às pinturas do final do século XIX e início do século XX, incluindo os
impressionistas e os artistas da Belle Époque). Apesar dessas tantas obras existentes, Proust
estabeleceu um paradigma por meio de três alegorias sobre Literatura, Pintura e Música que
valessem como modelos essenciais dessas três formas de arte, tornando-os arquétipos do
essencial em arte. Esses paradigmas são o seguinte: na Música, Vinteuil; na Literatura,
Bergotte; na pintura, Elstir. De nada adianta os críticos tentarem traduzir cada um desses artistas
alegóricos inventados por Marcel Proust associando-os a um artista existente nessa busca de
imediatização daquilo que é a chave para a compreensão da essencialidade artística em Proust.
Na verdade, eles, como diz Michel Butor, são os artistas imaginários e representam o que não
existe, isto é, a perfeição. Isso ocorre tanto no símbolo do pintor Elstir quanto no símbolo do
músico Vinteuil; interessante notar que, no caso do escritor Bergotte, o mesmo não ocorre, pois
existe nessa figura algo de ironia profunda na representação de uma literatura medíocre e não
essencial, como é o caso dos outros dois artistas. No que concerne à Literatura, o essencial está
para ser construído, diríamos, por meio da própria narrativa e da busca de uma grande realização
literária feita pelo próprio narrador da obra, pois no Em busca do tempo perdido uma
permanente procura da escritura literária, deixando sempre para amanhã os percalços e
dificuldades em ser um grande escritor, que desde menino o autor/narrador foi acompanhado e
exercitado a se tornar.
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No jogo de espelhos entre os modelos ideais de artistas da arte plena de realização,
encontramos em Elstir um modelo completo. Vendo o trabalho de Elstir, podemos compreender
a visão de Marcel Proust sobre os verdadeiros caminhos da arte e de suas relações com a
realidade. Existe a criação de uma belíssima e inteligente passagem na obra À sombra das
raparigas em flor em que todas essas questões convergem para uma rica forma de articulação
entre ficção e crítica. Isso se dá, mais ou menos, da seguinte forma: tendo avisado a sua avó, o
jovem narrador, Marcel, decide fazer um passeio para visitar o ateliê do famoso pintor Elstir;
Marcel vai envolvido por um espírito elevado e enlevado, vendo na arte uma transubstanciação
da realidade, na busca do real que a Arte pode conferir, e os passos no espaço ocorrem como
se o narrador atravessasse o mundanismo e penetrasse no universo dos deuses, e assim, como
diz a passagem, atravessando o jardim, seus olhos vão percebendo e perscrutando os lilases e
as florezinhas que norteiam o caminho, passando por esculturas de jardim antes mesmo de
penetrar o ambiente do ateliê.
Entrando ali, o narrador se defronta com a realidade da obra de arte, mostrada de várias
formas, de vários ângulos naquela ambiência de cromaticidade e de cheiros de tinta afora os
pincéis distribuídos no espaço do ateliê, molduras de vários formatos, circundando telas em que
tudo está acontecendo. São marinas pintadas, algumas mal começando, em que o artista colocou
sobre a tela apenas o aparato inicial, outras estão metonimicamente compostas com elementos
começados, continuados ou até mesmo acabados, como se fossem a concretização da frase de
André Gide que em uma conferência para artistas plásticos em 1901 disse que Deus compõe
o mundo, mas o artista o dispõe. Ali no ateliê de Elstir, o narrador nos faz enxergar essa
dimensão dialética, mística e mágica entre a proposição de Deus e a disposição do artista.
Nesse universo de pinturas recortadas, temos de voltar a Charles Baudelaire que em um
de seus comentários críticos de Curiosités esthétiques, de maneira ácida, comenta alguns
pintores que possuem falsa consciência sobre a própria arte e se valem, nas grandes telas, em
pintar da esquerda para a direita, acreditando que a pintura possa ser esse prosseguimento de
imagens imitativas das natureza que possam preencher a tela e compor o que ele chamaria de
“pintura” quando, na verdade, é apenas uma falsa mimetização, sem conseguir estabelecer uma
relação dialógica entre as imagens postas em forma de linguagem e a concepção do mundo;
Pintura é linguagem e não falsas formas de representação. Da forma como Proust nos mostra o
ateliê de Elstir, fica muito claro todo um universo teórico sobre a verdadeira arte.
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Da mesma forma, a música mostrada com perfeição nas sonatas de Vinteuil encontra em
Proust um alto grau de elevação quando analisa a música de Richard Wagner detidamente na
ouverture de Tannhäuser, mostrando a música monumental que no futuro levaria Friedrich
Nietzsche a reflexões profundas.
Finalmente, como anunciamos na alegoria da Literatura, Bergotte representa a
degenerescência, uma situação de menos, e isso é manifestado quando o escritor vai visitar a
exposição do pintor holandês Vermeer em Paris. Bergotte havia comido algumas batatas que
não lhe caíram bem, pois seu estômago era frágil; ele estava inseguro em visitar as obras daquele
pintor magnífico do século XVII, porque toda a crítica comentava sobre o quadro Gezicht op
Delft (1961), em que se destacava o amarelo da famigerada marquise, que mostrava a
genialidade do pintor holandês. Assim, Bergotte foi acompanhando as obras, mas incomodado
em ter de se deparar com a “obra maior”. Quando isso ocorreu, a fatalidade veio à tona: ao olhar
para o detalhe amarelo, entendeu o que era a perfeição no trabalho de arte; da parte ao todo e
do todo à parte estava a relação gestáltica da perfeição. Daí, foi passando mal e caindo e ali
morreu; entretanto, nesse percurso para a morte, Bergotte descobriu, também, que não havia
realizado a verdadeira criação artística com sua literatura mediana veio-lhe, ainda, a vontade
de retirar das livrarias toda sua obra exposta. Nesse momento, o narrador mostra que com a
morte de Bergotte, os livros dele foram expostos com contundência, mostrando a ironia amarga
do ato criador.
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REFERÊNCIAS
PROUST, Marcel. À lombre de jeunes filles en fleurs I. Édition réalisée sous la direction
de Jean Milly. Édition du texte par Danièle Gasiglia-Laster. Paris: Flammarion, 1987.
PROUST, Marcel. La Prisonnière. Édition du texte par Jean Milly. 3ª ed. revue et mise à
jour. Paris: Flammarion, 1984.
PROUST, Marcel. Le Côte de Guermantes I. Édition réalisée sous la direction de Jean
Milly. Édition du texte par Elyane Dezon-Jones. Paris: Flammarion, 1987.
PROUST, Marcel. Le Côte de Guermantes II. Édition réalisée sous la direction de Jean
Milly. Édition du texte par Elyane Dezon-Jones. Paris: Flammarion, 1987.
PROUST, Marcel. Le Temps retrouvé. Édition réalisée sous la direction de Jean
Milly. Édition du texte par Bernard Brun. Paris: Flammarion, 1986
PROUST, Marcel. Sodome et Gomorrhe I. Édition réalisée sous la direction de
Jean Milly. Édition du texte par Emily Eells-Ogée. Paris: Flammarion, 1987.
**Este trabalho foi originalmente publicado no livro Diálogos
Científicos (2023), da Editora Coletivo Cine-Fórum,
disponível em www.coletivocineforum.com/livros